domingo, 26 de maio de 2013

"Sentir-se pensado"

“Sentir-se pensado” – para Aldo Carotenuto (1933-2005), significa: “Senso de proteção que nos livra do medo de pensar por nós mesmos” (Eros e Pathos: amor e sofrimento. São Paulo: Paulus, 1994).
Carotenuto nos desafia a refletir sobre viver sob os cuidados de outrem, sem nos dar conta de que isto precisa ser assimilado à vida consciente.
            Se assim é, consideremos:
“Sentir-se pensado” é aceitar pacientemente tudo que é dito e acontece como não modificável.
            “Sentir-se pensado” é colocar-se passivamente diante do que é apresentado, sem considerar que poderia ser diferente ou, ao menos, que “simples” acontecimentos precisam ser experiências transformadoras.
“Sentir-se pensado” é se excluir do processo e ficar na obviedade.
“Sentir-se pensado” é deixar que a opinião da maioria ou de alguns se torne a própria.
“Sentir-se pensado” é aceitar que tudo que se diz que é feito para nós, como se fosse para nosso bem.
“Sentir-se pensado” é não julgar conforme a própria consciência, por temer a rejeição.
“Sentir-se pensado” é deixar-se ser conduzido por outros, porque dizem terem “pensado” por nós.
“Sentir-se pensado” é acreditar que a unanimidade é melhor que a contradição, por temer a dúvida sobre a escolha do caminho a percorrer.
“Sentir-se pensado” é abrir mão de existir por conta e risco, sem perceber que nisto está a prova de que a alma está viva.
“Sentir-se pensado” é deixar que o outro aponte o certo e o errado, e omitir-se diante dos desafios que se apresentam.
“Sentir-se pensado” é não assumir responsabilidades pessoais para seguir as setas culturais, familiares, sociais e religiosas, ou a falta, delas.
“Sentir-se pensado” é não deixar de lado as “confirmações”, mas se conformar a elas.
“Sentir-se pensado” é entregar-se sem cuidados aos que afirmam que cuidam de você.
“Sentir-se pensado” é acreditar que não há renúncias a fazer, decisões a tomar para que a vida siga uma direção mais saudável.
“Sentir-se pensado” é viver como se os outros fossem responsáveis pela sua felicidade e bem estar, e culpá-los quando isso não acontece.
“Sentir-se pensado” é buscar por uma referência externa que balize suas decisões, e acreditar ser possível permanecer inconsciente quanto ao domínio de forças interiores maiores que suas vontades pessoais, mas que, se trabalhadas, podem ser assimiladas à consciência.

“Sentir-se pensado” é fugir da solidão que nos diferencia do coletivo e se confundir ao coletivo que nos iguala.

Abuso sexual, o que fazer?

São evidentes as consequências sociais, morais, econômicas, psicológicas e institucionais que todas as formas de violência nos provocam; por isso, toda a sociedade se debruça sobre o tema na tentativa de compreender suas causas, e estabelecer critérios que visam aumentar a consciência das pessoas quanto às ações em seu combate.
Quanto à violência sexual contra crianças e/ou adolescentes não é diferente.
Para a Organização Mundial da Saúde (OMS): “Abuso sexual infantil é o envolvimento de uma criança em atividade sexual que ele ou ela não compreende completamente, é incapaz de consentir, ou para a qual, em função de seu desenvolvimento, a criança não está preparada e não pode consentir, ou que viole as leis ou tabus da sociedade. O abuso sexual infantil é evidenciado por estas atividades entre uma criança e um adulto ou outra criança, que, em razão da idade ou do desenvolvimento, está em uma relação de responsabilidade, confiança ou poder” (Consultation on Child Abuse Prevention. Geneva: WHO, 1999, p. 7).
Quer dizer: a violência sexual se dá na tentativa de estabelecer uma relação construída sobre a desigualdade, a dominação, a opressão, a exploração, a violação do direito à liberdade do outro ter a sua própria história, e ainda, que as vítimas permaneçam silenciosas e passivas.
Neste sentido, visando a garantia dos direitos humanos, em fortalecer a cidadania por meio do controle social e de um Estado responsável, o Conselho Federal de Psicologia (CFP) afirma: “Violência sexual é violação aos direitos humanos fundamentais” (Serviço de Proteção Social a Crianças e Adolescentes Vítimas de Violência, Abuso e Exploração Sexual e suas Famílias: referências para a atuação do psicólogo / Conselho Federal de Psicologia. - Brasília: CFP, 2009, p. 15).
Se olharmos para as estatísticas divulgadas pelas mídias nos últimos dias, acerca do Dia Nacional de Luta Contra o Abuso e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, o panorama que se desenha é semelhante a de um cenário de guerra, e o trabalho a ser realizado, portanto, é de reconstrução de valores morais, éticos, psicológicos e espirituais, para desfazer a ideia da “coisificação” do outro, e do resgate da integridade física, moral, cultural, psicológica e espiritual da vida.
No caso dos abusadores, entre algumas medidas, por exemplo, tal reconstrução se dá por assimilar à consciência os elementos que os levaram a buscar relacionamentos baseados no poder e controle sobre as pessoas de quem se aproximam; lidar, consciente e propositalmente, quanto ao rebaixamento dos níveis ou sobre a perda de controle sobre os seus impulsos e a sua ansiedade; na alteração dos ambientes sociais em que vivem; consultas médicas psiquiátricas e psicoterápicas.
Entre as vítimas devemos buscar os meios de lidar com os sentimentos de culpa e de vergonha; reabilitar a confiança em pessoas do mesmo sexo que o agressor; que podem explorar seus recursos internos na preservação de sua integridade física e psicológica, e contam com uma rede de proteção, talvez desconhecida ou não inacessível. É preciso, porém, observar que este trabalho precisa ser realizado por pessoas especializadas, para evitar causar maiores danos às vítimas.
Mas, a sociedade precisa participar de todos os esforços de prevenção à violência sexual, recusar todas as formas e atitudes de tolerância ou aceitação deste comportamento, inclusive nas piadas a respeito, e colaborar com os programas públicos.

domingo, 12 de maio de 2013

A Grande Mãe


           A nossa sobrevivência subjetiva no mundo não depende somente da nossa mãe como pessoa, nem de seu caráter pessoal, mas somos influenciados por um arquétipo, um padrão presente em todos os lugares e tempos históricos. Quer dizer, cada um de nós é como é, graças a uma forma pré-existente de mãe que fortemente, primeiro, atuou em nossos antepassados, sobre nossas mães e depois sobre cada um de nós. O arquétipo da Grande Mãe não pode ser reduzido à nossa mãe pessoal, ou a qualquer outra pessoa que tenha características de mãe, ou faça sua vez.
            Hoje, Dia das Mães, enaltecemos o polo positivo deste arquétipo: a capacidade de gerar a vida, ou seja, a fertilidade; a solicitude e a bondade especialmente nos primeiros momentos de vida, durante o primeiro ano; a sabedoria, muitas vezes intuitiva, nos momentos que buscamos seus conselhos; a proximidade com o Sagrado, considerada como proteção contra os perigos que, diariamente, nos rodeiam.
            Entretanto, como todos os arquétipos, o da Grande Mãe também possui um polo negativo, como pode ser percebido nos famosos contos de fadas dos irmãos Jacob Grimm (1785-1863) e Wilhelm Grimm (1786-1859), “João e Maria” e “Branca de Neve”. Ambos narram a relação mãe-filho: ora a mãe nos leva a vivenciar dificuldades, abandonos, sofrimentos, e a morte – situações metaforizadas na madrasta-mãe, na bruxa travestida de “boa mãe”, ou em nossas “rainhas-mães”.
            Como afirma o médico e psicólogo analítico alemão Erich Neumann (1905-1960): “É à mãe que a criança dirige sua demanda de remoção do medo, e quando o medo não é removido, a mãe é percebida como a mãe “terrível” que recusa” (O medo do feminino. São Paulo: Paulus, 2000, p. 225). Mas, isto não quer dizer que a mãe seja, pessoalmente, culpada por isto. Simplesmente, a criança não tem possibilidades de entender que a mãe é inocente.
            Para Neumann, de a mãe revelar-se “terrível” também é uma experiência arquetípica, pois independe do seu comportamento correto, como é parte do nosso processo de maturidade psicológica.
Quer dizer, necessariamente, as mães “são terríveis” queiram ou não queiram, gostem ou não gostem. É impossível não sê-lo.
Mas, ainda segundo Neumann, se permanecermos cultivando a figura idealizada da boa mãe, o lado positivo do arquétipo, negando seu lado “terrível”, por temer as consequências, como o inevitável sentimento de culpa, não só podemos apresentar “neuroses típicas de ansiedade, e a fobias, mas também, e especialmente, a vícios, e, se o ego for destruído de maneira extensa, a psicoses” (p. 233).
A nossa realização como pessoas depende, e muito, de aceitarmos o lado “terrível” de nossas mães, ou como nos ensinam os contos: encontrar sozinhos o caminho de volta para casa, guiando-nos pela riqueza interna que os sofrimentos nos fazem encontrar, e realizar um trabalho interno com os sentimentos de culpa, enérgica e amorosamente, representado na atuação dos anõezinhos e do príncipe.
Mães, vocês precisam prosseguir em seu próprio desenvolvimento psicológico, e isto passa, necessariamente, em se apresentar aos filhos como uma pessoa com um ego mais forte, menos regressivo ou subdesenvolvido, e neste processo, os seus maridos contribuem para que toda a família seja bem sucedida nesta experiência.

sábado, 4 de maio de 2013

Esperança ao alcoolista (2)


É necessário deixar claro que nem tudo está perdido para o alcoolista. Contudo, a possibilidade de resgatar a imagem de si mesmo, preservada em sua mente inconsciente que foi distorcida pelo uso e abuso do álcool e/ou de outras drogas, é uma tarefa que exige compromisso e responsabilidade bastante aguerridos em qualquer tipo de tratamento, pois, conforme C. G. Jung (1875-1961): “A mente inconsciente do homem vê corretamente mesmo quando a razão consciente é cega e impotente” (Resposta a Jó. Petrópolis: Vozes, 1986, p. 28).
Dioniso, deus do vinho, propõe uma novidade na religião grega ao prometer que como divindade pode ser vivenciada dentro de nós mesmos, mais do que sentida. Quanto a esta experiência, segundo o filósofo alemão Walter F. Otto (1874-1954): “As manifestações primordiais do mito: o ato e a palavra, o rito e o mito em estrito senso, se inter-relacionam de modo que em um o homem se eleva ao divino, vive e opera com os deuses, e no outro o divino descende e se faz humano” (Teofania. São Paulo: Odysseus, 2006, p. 44).
Conforme alguns autores ressaltam, a inter-relação humana com os deuses e vice-versa, no caso o alcoolista e Dioniso, enquanto estrutura arquetípica atuante no inconsciente humano, ao prometer liberdade e alegria pelo uso do vinho (bebidas alcoólicas), ou ao oferecer “esquecimento” de tudo que a pessoa não aprecia em si mesma e/ou em sua vida, especialmente aquilo que a preocupa, a entristece, a deixa ansiosa ou triste, na verdade tem um propósito: revelar verdades profundas que não podem ser alcançadas pelo intelecto, mas que foram erroneamente reprimidas.
Para um desses autores, John Sanford (1929-2005): “A experiência dionisiana é a parte do processo de individuação no qual estruturas fixas e rígidas do ego são dissolvidas, possibilitando a emergência de novas energias do Eu” (Destino, amor e êxtase: a sabedoria das deusas gregas menos conhecidas. São Paulo: Paulus, 1999, p. 143). Para o psicólogo analítico cubano Rafael López-Pedraza (1920-2011): “As iniciações dionisíacas ocorrem ao longo de toda uma vida, a fim de propiciar, constantemente, o movimento psíquico” (Dioniso no exílio: sobre a repressão da emoção e do corpo. São Paulo: Paulus, 2002, p. 31). Talvez, por isso mesmo, na opinião de Otto: “Dioniso é o mais psiquiátrico dos deuses gregos”. Até mesmo Santo Agostinho (354-430), em Cidade de Deus (capítulo IV), faz uma consideração, no mínimo interessante, quanto ao fogo presente na cal virgem, que ao ser tocada revela-se fria, mas que conserva em si um fogo adormecido, que é aceso quando misturado à água, que a faz ferver, como que querendo nos dizer, que os deuses invisíveis estão prontos para nos “aquecer”, retirando-nos da “frieza” da vida.
Uma pessoa excessivamente fixa, com posturas racionalmente rígidas, aparentemente, corretas e apropriadas pode beneficiar-se profundamente, destravando a energia psíquica do desenvolvimento, de um Eu profundo, ainda inconsciente, mas desejoso de ganhar espaço na sua consciência, libertando-a, como espera alcançar com o uso ou abuso das drogas ou das bebidas alcoólicas, mas com consequências, normalmente, desastrosas. Na realidade, o alcoolista busca soltar-se, vivenciar novas energias, dinamizar, intensamente, a existência conforme as potencialidades psíquicas que o habitam por dentro.