sexta-feira, 29 de abril de 2011

Desfiles de nós mesmos


            A festa do Carnaval nos reapresenta as estruturas psíquicas arquetípicas antiquíssimas, isto é, uma mente que mantém o lado primitivo praticamente intocado, como se não tivesse havido evoluções biológicas, culturais, sociais, tecnológicas e até religiosas.
As fantasias que os foliões desfilam e dançam diante dos nossos olhos não são meras recordações saudosistas, mas expressões contemporâneas da rudeza arcaica que nos constitui como humanos. Animais e celebridades são retratados por máscaras que ressaltam características deformadas, como se ainda estivéssemos em eras pré-históricas. Danças e músicas conservam os ritmos dos povos desconhecidos que habitam as florestas mais longínquas. Os costumes e as leis sociais são subvertidos para facilitar a adaptação das pessoas à folia. As roupas, ou a sua ausência, como se não tivéssemos avanços tecnológicos capazes de nos vestir convenientemente. E o fator religioso pode ser observado no grande ritual do “carnevale” – adeus carne, em italiano, como as festas promovidas pela Igreja Cristã desde a Antiguidade, que eram denominadas Saturnalia, com danças e cantos de crianças lideradas por sacerdotes embriagados. “No meio da missa, pessoas fantasiadas com máscaras grotescas ou de mulher, de leões ou de atores apresentavam suas danças, cantavam no coro canções indecentes, comiam comidas gordurosas num canto do altar” (JUNG, C. G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Vozes: Petrópolis, 2003, p. 253, apud Du Cange, Glossarium mediae et infimae latinitatis, p. 481).
A diversão e o prazer proporcionados pela festa encobrem o seu real significado. E há quem prefira viver o tempo todo como num ininterrupto carnaval, sem perceber que a vida é feita de pares de opostos: puerilidade e sabedoria, profano e sagrado, morte e vida, amor e ódio, lealdade e traição, tristeza e alegria, palavras e ações ridículas e bom senso, e muitos outros, não sendo possível um excluir o outro. Somos feitos de ambivalências, inclusive quando estamos em festa.
Vivenciamos em nosso dia a dia esta cisão de personalidade. Ora nossas decisões são coerentemente civilizadas, ora não. Ora agimos como se não fossemos nós mesmos, ora queremos e forçamos que as normas sejam mais frouxas. Ora preferimos nos ocupar com coisas inferiores, como fofoca, por exemplo, daí o sucesso das telenovelas e reality-show que estimulam a curiosidade acerca da vida alheia, como se não tivéssemos de nos ocupar com nós mesmos. Ora a vaidade nos força a estratificar a ordem social e nos sentimos orgulhosos por pertencer a uma delas, ora nos envolvemos em movimentos de solidariedade humana. Ora erigimos tradições eclesiásticas rígidas e rituais inflexíveis, ora não toleramos solenidade.
O desfile de rua apresenta a constituição interna coletiva e a realidade interna de cada um de nós, apesar de na maioria das vezes não assumirmos com responsabilidade livre e voluntária esta realidade. Os desfiles coletivos revelam a falha nacional; os foliões e os não-foliões, seus defeitos pessoais.
Seria bom que aproveitássemos esta festa para conhecermos mais e melhor a nós mesmos. A máscara exterior e os adereços usados nos bailes, ou até mesmo a necessidade que alguns sentem de se manterem afastados, em retiros religiosos, falam a respeito de quem somos interiormente. Desfilamos a nós mesmos a todo tempo.

Moradores de rua: a solução depende de todos


Enquanto houver uma só pessoa vivendo na rua, o tema não pode deixar de ser abordado, e a busca pelas soluções deve ser incansável.
Capacitação técnica e determinações legais regem as ações públicas e são imprescindíveis num estado de direito; e as de caráter particular no socorro destas pessoas, seguem o padrão arquetípico da humanidade: boa vontade e o espírito de solidariedade, que intencionam amenizar o sofrimento e socorrer os necessitados. De alguma maneira, contudo, estas ações precisam ser articuladas, pois os objetivos são comuns.
Os resultados da Pesquisa Censitária Nacional sobre Crianças e Adolescentes em Situação de Rua, realizada pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH) e pelo Instituto de Desenvolvimento Sustentável (IDEST), em 75 municípios do País, ajudam a perceber que as soluções estão na interdisciplinaridade, isto é, no respeito de cada campo do conhecimento, pois tudo é interdependente; e não há neutralidade, pois toda interferência modifica o objeto de trabalho.
Segundo o jornal O Estado de São Paulo (24/02 – C1), os resultados da referida pesquisa foram os seguintes: 32,2% vão para as ruas por brigas verbais com os pais e com os irmãos; 30,6% por violência doméstica; 30,4% por alcoolismo e uso de drogas; 22,8% em busca de liberdade; 13,2% por perda da moradia pela família; 8,8% por violência e abuso sexual. A maioria das crianças em situação de rua é do sexo masculino - 71,8%. Quanto à cor da pele: 23,8% brancos; 23,6% negros; e 49,2% pardos ou morenos. Escolaridade: 79,1% têm o 1º grau incompleto; 4,1%, 2º grau incompleto; 6,7%, 1º grau completo; e 10,1%, outros.
A pesquisa ainda aponta que apenas 2,9% costumam dormir em instituições que prestam algum tipo de assistência a elas. Mas, para 59,4% delas a falta de liberdade; 38,6% a proibição de uso de álcool e drogas; e 26,9% porque devem cumprir horários e regras para permanecer nestes abrigos, preferem dormir em outros lugares. Quando pensam em não dormir nas ruas: 56,1% lembram da violência que podem sofrer; 52,9% consideram as chuvas e ao frio a que estão sujeitos; e, 35,7% citam a ação policial.
Estes dados revelam que estas pessoas não podem ser vistas como imorais, alcoolistas, incivis, nem muito menos por especialistas em seus campos isolados uns dos outros que, segundo Edgar Morin (1921-), não enxergam o “essencial”, devido àquilo que chama de “inteligência cega” (A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. 8ª Edição. Rio de Janeiro: Bertrand, 2003, p. 13).
 Eles nos apontam que são pessoas que têm dificuldades de dialogar e de conviver com outras pessoas que pensam diferentemente delas; que não sabem como controlar seus impulsos verbais, físicos, emocionais e sexuais, e devido a isto agem com violência, ou se deixam levar pela pressão do grupo e suas necessidades psicológicas, quando o assunto é álcool e drogas, e os valores de liberdade. A questão hormonal, especialmente os desequilíbrios de testosterona, deve ser levada em consideração, também. As deficiências na formação escolar têm contribuído bastante para uma fraca consciência de si mesmo: é outro problema que precisa ser enfrentado por todos, pais e professores.
Outras áreas devem ser envolvidas, pois a tarefa é de todos nós. Faça a sua parte.

Moradores de rua: quem são?


            “O morador de rua não é só aquele que está debaixo do viaduto, dormindo debaixo de uma coberta (...), mas é aquele morador que um dia teve uma cama quente, um lar, uma cultura. Mas como se fosse numa fração de segundos, como um vírus no computador, aquilo deu um "tilt" na vida dele. E ele parou de funcionar, e ele foi parar ali, como se fosse um depósito de ferro velho. Sem ter alguém, um mecânico que fosse lá tentar descobrir onde estava o problema, tentar descobrir se tinha conserto ou não aquela peça...”, assim se define um morador de rua. E, continua: “E cada vez mais, quanto mais tempo a pessoa fica colocada nesse depósito de ferro velho, que é o mundo aí fora, as calçadas e as esquinas da vida, aquele defeito vai se agravando de tal forma que vai tomando conta de todas as peças. Chega um determinado momento que esta peça não tem mais vontade própria, nem sequer ela lembra que teve um passado. Ela começa a viver na verdade aquele sub-mundo que ela está vivendo e esquece que existe outro mundo. Ela começa a ver as pessoas que vivem nesse outro mundo como se fossem "ETs", como se fossem pessoas superiores a ela, ao máximo. Por mais capacidade que essa pessoa tenha, ela não consegue botar isso para frente, ela não consegue botar isso para uma mudança da própria vida dela” (citado por MATTOS, R. M. e FERREIRA, R. F. Quem vocês pensam que (elas) são? Representações sobre as pessoas em situação de rua. Porto Alegre: Psicologia e Sociedade, Vol. 16, nº 2, 2004).
É morador de rua: “Todo indivíduo migrante, imigrante ou nascido numa grande metrópole que tem o seu fundo de consumo completamente dilapidado (...) e não consegue mais repor tal fundo e promover o seu bem-estar. Após atravessar um momento em que ocorre o afastamento do mercado de trabalho, a desestruturação familiar e o rompimento com as antigas relações que compunham sua rede de sociabilidade, esses indivíduos passam a depender da rede pública de proteção social, quando não se apropriam do espaço público, transformando-o em moradia” (GIOGETTI, C. Moradores de rua: uma questão social? São Paulo: Fapesp/Educ, 2006).
            Para onde ir sem casa, sem família, sem trabalho, sem dinheiro, sem amigos? Há algum outro lugar? Qual? Onde é? Como chegar até lá? Quem souber favor indicar.
            Há muito tempo, a pobreza é encarada como foco de reprodução de doenças. O fenômeno da exclusão social tem aí seu nascedouro: se o indivíduo é pobre, é sinal de que ele é doente. Por isso, para muitos, os moradores de rua devam ser tratados como uma questão sanitária. “Cidade limpa, povo civilizado” – é o lema de várias campanhas públicas, mas que reforçam a ideia da assepsia social, não muito distantes do ideário nazista.
A ideologia do “clean” ganha cada vez mais espaço em nosso mundo: na arte, na moda, na arquitetura, na economia, na música, até no sistema jurídico está presente a ideia do minimalismo, a valorização do “mais, com menos”. Contudo, esta relação não se aplica às pessoas. Indivíduos “com menos”, passam a ser invisíveis. Só as pessoas que têm são interessantes e notadas. Por isso, para muitos, ter é prioritário ao ser. E, quem não mantém os benefícios da família, do trabalho e dos amigos, provoca estranheza, porque constrange, e logo são tratadas com hostilidade e indiferença, como se fossem não-humanas.
Talvez por isso, para muitos, trata-se de um problema insolúvel. E um dos fatores que contribuem para este entendimento é considerar que estas pessoas são “culpadas” pela situação que estão vivendo. Segundo o teólogo e psicólogo social Pedrinho Guareschi, pode-se afirmar: a “culpabilização” é gerada pela ideia capitalista de que todos têm igual acesso aos bens de consumo, e oportunidades de viver. Porém, não é difícil perceber que há outros fatores que integram a vida humana.

Moradores de rua


            Vulnerabilidade. Esta palavra define o estado de coisas que experimenta um morador de rua. As condições materiais e sociais são precaríssimas, e só deterioram a cada dia. São encontradas morando nas ruas, pessoas de todas as faixas etárias: de bebês a idosos. Todos, sem exceção, são rotulados por alguns adjetivos: “maloqueiro”, “sem-teto”, “pedinte”, “mendigo”, “desocupado”, “preguiçoso”, “vagabundo”, “pardal”, “bêbado”, “marginal”, “pobrezinho”, “doido”, etc., com enorme prejuízo social, moral, familiar e pessoal. Para o professor José Sterza Justo, doutor em Psicologia Social, da Universidade Estadual Paulista: “O descaso, o desprezo e a rigidez no tratamento são mais doloridos, segundo os andarilhos, do que a fome e a miséria material”.
Contudo, deve-se registrar: esta forma de enquadrar ou classificar as pessoas não leva em conta os fatores que podem tê-las levado a viverem nas ruas. Enquanto estivermos encantados com o espírito da época que valoriza cada vez mais o avanço tecnológico, o estabelecimento do regime político democrático e o acesso a bens de consumo que deixam a vida mais prática, dificilmente nos ocuparemos com “o processo permanente de morrer”, para o qual Hannah Arendt (1906-1975) nos chamou a atenção em seu As Origens do Totalitarismo (1951). Na realidade, tanto as situações que levam as pessoas a viverem como moradoras de rua, quanto a exclusão social são fenômenos que podem ser mensurados, analisados e atendidos.
            Segundo Sarah Escorel, médica sanitarista, a exclusão social é um "processo no qual – no limite – os indivíduos são reduzidos à condição de animal laborans, cuja única atividade é a sua preservação biológica, e na qual estão impossibilitados de exercício pleno das potencialidades da condição humana".
            Para os doutores em Saúde Pública Walter Varanda e Rubens Adorno: “Entrar na rua significa desenvolver um processo compensatório em relação às perdas e começar a usar outros recursos de sobrevivência, até então ignorados, e assimilar novas formas de organização que permitem a satisfação das necessidades e a superação dos obstáculos que a cidade apresenta. Entretanto, o que as tornam visíveis é justamente a situação de carência e deficiência, que caracterizam um novo modo de se vincularem ao contexto urbano”.
Estas pessoas estabelecem como perene o que deveria ser apenas transitório. A vulnerabilidade encerra na desfiliação e inexistência sociais. De homo faber, que realiza a sua própria identidade no trabalho, se transformam em animal laborans, ou seja, ocupam-se em atender apenas ao equipamento biológico: comer, beber, dormir e secretar. As deficiências físicas e mentais impedem o desenvolvimento de suas competências internas que as fortaleceriam contra o descarte social sofrido, bem como a ociosidade, a baixa autoestima, e a falta de projeto pessoal de vida.
O verso de Álvaro Alves de Faria (1942-), jornalista, poeta e escritor paulistano, nos ajuda a compreender melhor a situação vivida por quem faz das ruas seu modo de viver: “O salto mortal é meu número especial nesta tarde de domingo. Não tentarei o trapézio, por não saber voar sobre as cabeças que torcem para a corda arrebentar. Pensando bem, abrirei a tarde falando ao respeitável público que farei a mágica final: desaparecer sem nunca ter sido visto por ninguém”.
Como estas pessoas podem sair desta condição, se são tratadas como cidadãos de segunda classe, às vezes até mesmo pelo poder público, que deveria prestar-lhes atendimento adequado, e pela comunidade em geral, que as gerou?

Aos Pais


            As necessidades das famílias sempre devem ocupar o centro de nossas atenções, na tentativa de atenuar os efeitos negativos do lado obscuro da personalidade humana, que vez ou outra, comete desatinos e nos prova o quanto somos fracos, frente ao mal que nos habita por dentro.
            Os filhos percebem no tipo de vida que os pais levam o grau de honestidade psicológica que possuem. Eles percebem a hipocrisia, isto é, qualquer atitude moralista dissociada da verdadeira realidade emocional que os pais vivem. Assim, os filhos interpretam se podem ou não imitá-los.
            A vida humana se dá em bases morais, que se verificam no relacionamento das pessoas umas com as outras, e que guardam a capacidade de terem sentimentos humanos. O problema surge quando as crianças não fazem essa relação: viver com os outros é muito bom quando me relaciono bem com elas.
Mas, como podem aprender isso se seus pais não se relacionam bem com elas? Como as crianças aprenderão a se relacionar com os outros, se em casa são mal tratadas, desrespeitadas, tidas como obstáculos aos interesses pessoais dos pais? Ou então, em outro extremo, mimadas, superprotegidas, atendidas como déspotas do relacionamento familiar, como um “reizinho mandão”, cujos desejos devem ser atendidos a qualquer custo, com medo de ficarem “traumatizados”, porque seu temperamento é “difícil”?
Ora, pais: limites nunca traumatizaram ninguém! O que traumatiza é a rejeição quando os filhos fazem algo errado. O amor dos pais precisa ser incondicional, isto é, amam os filhos mesmo quando eles erram.
            Quando os pais rejeitam os filhos, estes se auto-rejeitam, porque se sentem responsáveis pelo mau humor daqueles. E então, para estar à altura dos pais, a criança tenta desesperadamente adaptar-se às formas de comportamento que agradam os pais. Com isso, ela como que se separa do seu lado obscuro, que a levou a fazer algo desagradável, e quanto mais longe a criança estiver da sua “sombra”, menor sua chance de se “reabilitar”, provocando outras situações de mau humor dos pais, repetindo o problema muitas vezes.
            “Se pretendem ter sucesso ao lidar com a sombra dos filhos, os pais precisam aceitar e estar em contato com a sua própria sombra. Os pais que têm dificuldade em aceitar seus próprios sentimentos negativos e suas reações menos nobres, acharão difícil aceitar de modo criativo o lado escuro dos filhos. Mas, aceitação, não significa permissividade. De nada serve à criança ter pais que permitem todo tipo de comportamento. Existem formas de comportamentos que não são aceitáveis na sociedade humana; a criança precisa aprender isso; a criança precisa organizar sua própria capacidade interior de controlar essas formas de comportamento. Uma atmosfera permissiva faz com que se embote a capacidade de a criança desenvolver seu próprio sistema de monitoração do comportamento. O desenvolvimento do ego, então será demasiado para permitir que a criança, quando adulta, possa lidar com a sombra” (Zweig e Abrams. Ao encontro da sombra. Editora Cultrix. São Paulo, 1994).
            Pais, é com paciência, sabedoria e consciência de sua sombra, que se educa melhor os filhos. Se não se pode exagerar na permissividade, não se pode exagerar na austeridade.