domingo, 8 de fevereiro de 2015

Carnaval: é brincando que nos fazemos homens

            A antecipação do carnaval demonstra o afeto que o povo tem por uma das maiores festas que alegra o País de ponta a ponta. Tanto que comentamos: “O ano só começa depois do carnaval!”
A festa, desde tempos imemoriais, é para ser um período de liberdade cômica, de riso, para liberar as pessoas de qualquer princípio rígido, prescrito, preceituado, simplificado, normativo, inflexível, burocrático, pré definido, estático, unilateral, sério, seja de origem governamental, dogmática, eclesiástica, social e/ou familiar.
O ritual do carnaval oferece: “Uma visão do mundo, do homem e das relações humanas totalmente diferente, deliberadamente não-oficial, [...] um segundo mundo e uma segunda vida” (BAKHTIN, M. M.  A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec, Editora da Universidade de Brasília, 1987, p. 4, 5).
No carnaval é isto que buscamos: o mundo e a nós mesmos, o nosso lado “primitivo”, fora dos padrões rígidos da formalidade, que existe além das fronteiras ou limites da etiqueta, da praxe, da rotina, crítico, definido por tabus políticos, morais e religiosos correntes, racional. Antes, nos encontramos com o mundo e o nosso lado marcado pela comicidade, pela ideia da existência de uma realidade livre do quadro das normas e das regras, não literal, da fantasia, da alegoria, da loucura, da figuração, da imaginação; sim, é um “ficar na imaginação”, é deixar que a psique aconteça. Como diz o próprio Bakhtin (1895-1975): “O carnaval é a segunda vida do povo, baseada no princípio do riso. É a sua vida festiva [...] a qual penetra temporariamente no reino utópico da universalidade, liberdade, igualdade e abundância” (idem, p. 7, 8).
            O carnaval nos põe frente à figura que evitamos configurar aos outros, isto é, aquele ou aquela que é livre, desimpedido, louco, imaturo, instintual, imoral, lobo, perdulário, pirata, corrupto, mentiroso, bocó, enganador, confuso, divertido, brincalhão, marginal, imperfeito, incompleto. Trata-se daquele “elemento vindo de outra esfera da vida corrente, a do espírito e das ideias, [...] dos ideais. Sem isso, não pode existir nenhum clima de festa”, afirma Bakhtin (idem, p. 8).
            É o tempo de rir de si mesmo e de todos. Ainda, conforme Bakhtin, o riso carnavalesco é “patrimônio do povo [...] alegre e cheio de alvoroço, mas ao mesmo tempo burlador e sarcástico, nega e afirma, amortalha e ressuscita simultaneamente [...] escarnece dos próprios burladores [...] expressa uma opinião sobre um mundo em plena evolução no qual estão incluídos os que riem” (idem, p. 11).
            Em outras palavras, é fazer experiências com nós mesmos, já que nada em nós ou no mundo pode ser considerado imutável, definido, com risco de ficarmos petrificados, num mundo sem vida. O carnaval é para ser um tempo de experimentarmos que o mundo e nós somos seres fluidos, em eterno vir a ser.
            “A fantasia não erra, porque a sua ligação com a base instintual humana e animal é por demais profunda e íntima. [...] O poder da imaginação, com sua atividade criativa, liberta o homem da prisão da sua pequenez, do ser “só isso”, e o eleva ao estado lúdico. O homem, como diz Schiller, só é totalmente homem, quando brinca”, registra C. G. Jung (A prática da psicoterapia. Petrópolis: Vozes, 1991, p. 43).
(Sílvio Lopes Peres – Psicólogo Clínico – CRP 06/109971 – Fones: 998051090 / 981378535 – http://psijung.blogspot.com.br)

domingo, 1 de fevereiro de 2015

Tentando compreender o terrorismo

“Temos que ligar o terrorismo às suas raízes em nossa consciência religiosa. Um terrorista é o produto da nossa educação que diz que a estética é somente para os artistas, a alma só para os padres, a imaginação é trivial ou perigosa e só para os loucos, e que a realidade à qual devemos nos adaptar é o mundo exterior, e que este mundo está morto. Um terrorista é o resultado de todo este longo processo de eliminação da psique. Corbin me disse uma vez: ‘O que está errado com o mundo islâmico é que ele destruiu suas imagens, e sem estas imagens que são tão ricas e tão completas na sua tradição, estão enlouquecendo, porque não têm continente para seu extraordinário poder imaginativo’. O trabalho que ele fez com os textos místicos-filosóficos, os textos que resgatam o mundo imaginal, pode ser visto como uma atitude política de primeira ordem: era um confronto do terrorismo, fanatismo e niilismo bem nas suas raízes psíquicas. ” Hillman - EntreVistas

Quando o humor seca toda religião enrijece no fundamentalismo:
"Trata-se de um ritmo normal em reações humanas, ilustrado, por exemplo, no teatro clássico grego, onde três tragédias são seguidas por uma comédia. Ninguém podia ir para casa depois de ter visto Édipo Rei e duas outras peças no mesmo tom; tinha de haver no final uma das comédias de Aristófanes, para que todos os espectadores rissem a bandeiras despregadas. Ou existe o mecanismo típico em que, no momento mais solene de um funeral, uma pessoa vê subitamente algo burlesco e tem uma reação nervosa que a faz querer rir. É o clímax de excitação que se converte no desejo de rir; ninguém pode suportar por muito tempo uma condição trágica exagerada, de modo que, ocasionalmente, sente-se compelida a levá-la para o lado da troça. Isso também explica a Missa Jocosa da Idade Média. Durante 364 dias por ano, a Missa e a Hóstia são recebidas com a maior seriedade e, um dia por ano, a liturgia era simplesmente um motivo de chistes. Ou, no ritual dos índios norte-americanos, onde existe um palhaço que pertence ao clã Thunderbird, que escarnece das cerimônias mais sagradas, fazendo comentários obscenos e chistes a respeito delas." Marie-Louise von Franz - Alquimia.
(Textos do facebook do Andre Dantas)

Auschwitz, nunca mais?

            Há 70 anos, no dia 27 de janeiro de 1945, o exército russo invadia o campo de extermínio denominado Auschwitz, ao sul da Polônia, onde mais de 1,3 milhão de judeus, 150 mil poloneses, 23 mil ciganos romenos, 15 mil prisioneiros de guerra soviéticos e dezenas de milhares de pessoas de diversas nacionalidades morreram, se não nas câmaras de gás, morriam de fome, doenças infecciosas, trabalhos forçados, execuções individuais ou experiências médicas.
            Viktor Frankl (1905-1997) psicólogo austríaco, fundador da Logoterapia, vertente do existencialismo humanista, sofreu os horrores nazistas durante mais de dois anos nos campos de concentração de Theresienstadt, Kayfering e Terkheim, escavando túneis e construindo ferrovias. Esteve em Auschwitz, em 1944, onde perdeu sua mãe, esposa e um dos irmãos. Trazia tatuado em seu braço o número 119.104.
            Ele conta: “Em Auschwitz, dormi em beliches de três andares, e em cada andar (medindo mais ou menos 2x2x5m) dormiam nove pessoas, em cima de tábua pura; e para cobrir-se, havia dois cobertores para cada andar, isto é, para nove pessoas. Naturalmente só podíamos nos deitar de lado, apertados e forçados um contra o outro”.
            Em um de seus livros - Em busca de sentido: um psicólogo no campo de concentração - narra que, durante o período que viveu nos campos, buscou responder a seguinte questão: “De que modo se refletia na cabeça do prisioneiro médio a vida cotidiana do campo de concentração?”
            Algumas das respostas a que chegou: “Todos sabiam o que significava Auschwitz: câmaras de gás, fornos crematórios e execuções em massa”. Com o passar dos dias, meses e anos, as pessoas experimentavam: a ilusão de, a qualquer momento, surgir alguém que pusesse fim ao sofrimento, seguida por uma curiosidade fria que as distanciava do seu mundo e, o humor negro, como: morrer na câmara de gás é poupar-se do suicídio. Não demorava muito, para que tudo isso se transformar em grande apatia: “A pessoa aos poucos vai morrendo interiormente [...] indiferente e já insensível, pode ficar observando (companheiros serem espancados) sem se perturbar. [...] Além disso, há o nojo. O nojo de toda a fealdade que o cerca, interior e exterior”.
            Entretanto, Frankl observou que: “À parte deste fenômeno mais ou menos geral, existem duas áreas de interesse. Em primeiro lugar a política (o que não é de surpreender) e, em segundo, a religião (o que não deixa de ser notável). [...] O interesse religioso dos prisioneiros, na medida em que surgia, era o mais ardente (com surpreendente vitalidade e profundidade) que se possa imaginar”.
            Mesmo depois de mais meio século, Auschwitz precisa significar algo para cada um de nós: que o mal que irrompe no mundo, eclode por toda parte no âmbito psíquico, não importando o grau cultural, econômico e espiritual; que não estamos imunes à repetição de tais atrocidades, ainda mais, que possuímos tantos traidores e psicopatas políticos, entre nós. Pois, como afirma C. G. Jung, referindo-se a este tipo de político: “Quem tudo promete nada cumpre e aquele que muito promete está na iminência de se valer de expedientes escusos para cumprir a promessa, abrindo as vias para uma catástrofe” (Aspectos do drama contemporâneo. Petrópolis: Vozes, 1988, p. 23).
            Lamentavelmente, ainda não podemos dizer: Auschwitz, nunca mais!
(Sílvio Lopes Peres – Psicólogo Clínico – CRP 06/109971 – Fones: 998051090 / 981378535 – http://psijung.blogspot.com.br)

domingo, 25 de janeiro de 2015

Em 2016, o 1% mais rico do mundo terá mais dinheiro que os outros 99%

            A desigualdade entre ricos e pobres está crescendo muito rapidamente, em todas as partes do mundo.
Segundo a organização britânica Oxfam International, em 2013, sete de cada dez pessoas viviam em países onde a desigualdade era maior que há 30 anos; em 2014, somente 85 pessoas em todo o mundo possuíam a mesma riqueza que a metade mais pobre do mundo; uma em cada nove pessoas não tem comida suficiente; mais de um bilhão de seres humanos vive com menos de US$1,25 por dia (R$3,23 - conversão feita no site do Banco Central do Brasil, em 23.01.15); e, daqui a um ano, em 2016, 1% mais rico terá mais dinheiro que os outros 99% do restante da humanidade (oxfam.org).
            Este estudo aponta que a diferença entre pessoas ricas e pobres é a causa da corrupção na política, baixo crescimento econômico, aumento da criminalidade e dos conflitos sociais, prejuízos às condições de saúde, educação, transporte e moradia.
            Joseph Eugene Stiglitz (1943-), professor da Universidade de Columbia (EUA), e prêmio Nobel de Economia em 2001, ressalta: “A extrema desigualdade em termos de renda e riqueza que existe atualmente em grande parte do mundo é prejudicial para a nossa economia e nossa sociedade, e enfraquece a nossa política. Esta situação deveria preocupar a todos nós, mas, o certo é que as pessoas mais pobres são as que mais sofrem: não só suas vidas são afetadas por uma grande iniquidade, mas que também carecem, em grande medida, de igualdade de oportunidades. O informe de Oxfam nos lembra, num momento muito oportuno, que qualquer iniciativa que realmente pretenda erradicar a pobreza deve fazer frente às decisões sobre políticas públicas que geram e perpetuam a desigualdade”.
            No momento que a nossa cidade e o País discutem medidas econômicas, não há nada pior do que decidir por aquelas que visam encarecer, ainda mais, os valores do transporte urbano, das taxas e dos impostos.
Estes aumentos incrementam as condições das desigualdades entre pobres e ricos, e mais: criam as condições para se estabelecer a separação entre aqueles que podem pagar e os que não conseguem, devido às condições a que já estão submetidos; suscitam, em alguns, o sentimento de que são superiores porque podem pagar, e, em outros, de que são inferiores porque não podem pagar; quer dizer, somos tocados em nosso instinto de poder, nos sentimos “mexidos” em nossa capacidade de subordinar as coisas ao nosso querer que, muitas vezes, senão sempre, não aceita ser contrariado principalmente quando sentimos que a sobrevivência fica ameaçada, e quando isto acontece podemos reagir com violência.
“O mais alto interesse da sociedade livre deveria ser a questão das relações humanas, do ponto de vista da compreensão psicológica, uma vez que sua conexão própria e sua força nela repousam. Onde acaba o amor, têm início o poder, a violência e o terror”, afirmou C. G. Jung, há 58 anos (Presente e futuro, 1999, p. 49).

(Sílvio Lopes Peres – Psicólogo Clínico – CRP 06/109971 – Fones: 998051090 / 981378535 – http://psijung.blogspot.com.br)

domingo, 18 de janeiro de 2015

Papel das religiões em casos como o do Charlie Hebdo

            Para alguns o atentado contra o semanário Charlie Hebdo, no último 07, pode se constituir em mais uma tentativa de impedir a liberdade de expressão. Para outros, entretanto, a discussão acerca das restrições de liberdade que estão em vigor desde o 11 de setembro de 2001, em vários países do mundo, deve trazer maiores problemas ainda, pois conforme o filósofo italiano Giorgio Agamben (1942-), a pretexto de segurança pública, as condições de exercício da liberdade são tão restritivas quanto na época do fascismo (Instituto Humanitas Unisinos. São Leopoldo, 16.01.15).
            E, as religiões, qual seria o papel que deveriam exercer nesse debate?
            Em abril de 1996, o filósofo francês Paul Ricoeur (1913-2005), de confissão protestante, e o teólogo católico suíço Hans Küng (1928-), debateram a questão. A conversa foi longa, mas transcrevo alguns trechos, para a nossa reflexão:
Ricoeur: As religiões têm inspirado guerras, e no planeta se continua ainda a matar em nome de Deus. Há ainda na Europa lugares onde se mata em nome de Deus. Crê que esse obstáculo possa ser transposto, ao mesmo tempo, por cristãos, mas igualmente por outras religiões?
Küng: Não haverá paz duradoura entre as nações, enquanto não houver paz entre as religiões. A paz entre as religiões é uma das componentes determinantes para que se possa atingir a paz completa.
Ricoeur: É preciso antes de mais saber por que esta tendência para a violência existe na própria religião e como nós podemos purgá-la, digamos assim, do próprio interior dessa religião? Penso, por outro lado, que essa autocrítica deveria partir disto: que é do próprio fundo de uma convicção forte que há o perigo da violência.
Küng: Sim, de fato, é isso mesmo. Citamos muitas vezes o Islã, a título de exemplo. Há muitos cristãos que são fundamentalistas e que gostariam de lançar já aqui uma guerra contra aqueles que não acreditam, contra os agnósticos, contra os ateus, e esta guerra poderia, ela também, chegar a atos de violência. É preciso então empreender uma reflexão sobre a sua religião, e creio que toda a tradição religiosa tem páginas negras na sua história.
Ricoeur: Como purificar então essa convicção da força de uma Palavra que nos precede, da tendência a impô-la pela violência?
Küng: Muitas vezes, aqueles que são mais agressivos em matéria religiosa, são aqueles que não estão muito seguros da sua fé. 
Ricoeur: A esse respeito, se tivesse de dizer uma palavra de esperança, seria para afirmar que haverá sempre, aqui, ali, em cada confissão, uma palavra forte que dirá: não, não mates, diz a verdade, sê justo, respeita os fracos.
É como nos lembra Carl Gustav Jung (1875-1961): “São as pessoas muito piedosas (religiosas) que, inconscientes de seu outro lado (mal), desenvolvem estados de espírito verdadeiramente infernais, que as torna insuportáveis para seus próximos. Mas conviver com um santo pode desenvolver um complexo de inferioridade ou até mesmo uma violenta explosão de imoralidade entre indivíduos menos dotados de qualidades morais. A moral parece ser um dom equiparável à inteligência. Não é possível incuti-la, sem prejuízo, num sistema ao qual ela não é inata” (Psicologia e religião. Petrópolis: Vozes, 1990, p.81).

É preciso que os religiosos tenham a forte convicção do mal a que são capazes de cometer, tão intensa quanto têm acerca de seus conteúdos doutrinários, dogmáticos.

domingo, 11 de janeiro de 2015

Je sui Charlie

            O atentado contra a revista francesa Charlie Hebdo, no último dia 07 de janeiro, fez-me decidir a participar e, de alguma maneira, tentar contribuir com a campanha mundial: Je sui Charlie – Eu sou Charlie.
            Nossos ancestrais, nas cavernas, batendo pedras em pedras, desenhavam suas ideias. “O desenho é o primeiro passo para visualizar uma ideia”, citado por Caroline Andréia Girardi, em: Desenho como desígnio: reflexões (Revista Junguiana. São Paulo, 2014). Os ícones nos acompanham há milhares de anos. E, o cartum é um ícone.
            “Quando abstrai uma imagem através do cartum, não estamos só eliminando os detalhes, mas nos concentrando em detalhes específicos. Ao reduzir uma imagem a seu “significado” essencial, um artista pode ampliar esse significado de uma forma impossível para a arte realista”, citado por Gasy Andraus, em sua tese de doutorado na Universidade de São Paulo (2006) – As histórias em quadrinhos como informação imagética integrada ao ensino universitário.
Há quem interprete uma obra de arte como um ‘disfarce’ do estado neurótico do artista. É como se todas as artes revelassem algum recalque da vida do artista, algum limite infantil e autoerótico de sua personalidade que o restringe, quer dizer, como não quer encarar a realidade psicológica em que se encontra, então o artista pinta, desenha, encena, compõe, canta, esculpe, escreve, etc.
Eu sou Charlie, por que: “A essência da obra de arte não é constituída pelas particularidades pessoais que pesam sobre ela – quanto mais numerosas forem, menos se tratará de arte; pelo contrário, sua essência consiste em elevar-se muito acima do aspecto pessoal. Provinda do espírito e do coração, fala ao espírito e ao coração da humanidade. [...] Por um lado, (o artista) é uma personalidade humana, e por outro, um processo criador, impessoal. [...] Isto, porque a arte, nele, é inata como um instinto que dele se apodera, fazendo-o seu instrumento. Em última instância, o que nele quer não é ele mesmo enquanto homem pessoal, mas a obra de arte. Enquanto pessoa tem seus humores, caprichos e metas egoístas; mas enquanto artista ele é, no mais alto sentido, “homem”, e homem coletivo, portador e plasmador da alma inconsciente e ativa da humanidade. É esse o seu ofício, cuja exigência às vezes predomina a ponto de pedir-lhe o sacrifício da felicidade humana e de tudo aquilo que torna valiosa a vida do homem comum” (C. G. Jung. O espírito na arte e na ciência. Petrópolis: Vozes, 1985, p. 90-91).
Sobre o quê Jean Cabut, Georges Wolinski, Stéphane Charbonnier, Bernard Verlhac e Philippe Honoré falavam ao nosso espírito, ao nosso coração? Qual “detalhe específico” nos mostravam? Muito mais que motivados pelos seus pontos de vistas, à semelhança do grande Michelangelo (1475-1564), que retirava do bloco de mármore suas peças encantadoras como Pietà e Davi, os cartunistas franceses mostravam-nos qual a forma que a sociedade humana pode tomar, se guiada pela atividade do misterioso, indizível, enigmático, invisível, vivo e implacável inconsciente.
Com seus traços simplificados ressaltavam a estrutura fundamental da psique comum a todos nós e, puxavam-nos para aquilo que o inconsciente quer que olhemos, para aquilo que este pensa de nós. Sua arte funcionava como uma ponte entre o inconsciente e a consciência.

Je sui Charlie por que: “Ao desenhar, independentemente da vontade impingida pela consciência do ego, há um outro eu que “dialoga” com o indivíduo [...] que objetiva mostrar ao ego outros patamares do olhar sobre o indivíduo e suas atitudes em relação ao mundo”, Caroline Andréia Girardi (idem, p. 28).

domingo, 4 de janeiro de 2015

“O futuro se prepara, muito tempo antes, no inconsciente”

Nossa vida resulta do infinito tesouro de imagens que carregamos em nosso inconsciente pessoal (que por vários motivos encontram-se esquecidas ou reprimidas), como também, aquelas que compõem o inconsciente coletivo (encontradas na mitologia, contos de fadas, nas artes em geral e em todas as religiões). Não só acessamo-las, mas principalmente, elas nos acessam.
Para James Hillman (1926-2011): “Não somos nós quem imagina, mas nós que somos imaginados” (Psicologia arquetípica: um breve relato. São Paulo: Cultrix, 1991, p. 29). E, segundo C. G. Jung (1875-1961): “Tudo aquilo que se torna consciente é imagem” (Estudos alquímicos. Petrópolis: Vozes, 2003, p. 55).
 “Pensamos” mais de dentro para fora. O que nos acontece no mundo externo tem seu início no mundo interno. Somos portadores de imagens que se apresentam em sonhos, fantasias e alucinações.
Em outras palavras: imaginar é a atividade principal da psique; ela “cria diariamente a realidade. Só encontro uma expressão para designar essa atividade: a fantasia. A fantasia tanto é sentir como pensar, tanto é intuitiva como perceptiva. [...] a fantasia me parece ser a mais clara expressão da atividade psíquica”, afirma Jung (Tipos psicológicos. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1987, p. 80, 81).
Refletindo quanto ao futuro que se aproxima na forma de um novo ano, somos influenciados e influenciamos a realidade que nos rodeia por imagens que habitam o inconsciente. “O futuro se prepara, muito tempo antes, no inconsciente”, nos diz Jung (Memórias, sonhos e reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988, p. 209).
A realidade exterior é gerada a partir da realidade interior.
Tanto as dificuldades quanto as suas soluções que todo o mundo atravessa passam pela atividade do inconsciente, cuja energia provoca encontros construtivos e/ou arrasadores, realizações promissoras e/ou destrutivas, transformações integrativas e/ou caóticas, direções harmoniosas e/ou conflituosas.
Tudo que dá certo e aquilo que dá em nada; os caminhos incertos e as pessoas erradas que nos acompanharam; os acontecimentos e o que nunca aconteceu; tudo que mudou e tudo que nunca mudará integram nosso mundo interior. Tudo depende do “diálogo” com ele especialmente quando as dificuldades físicas, sociopolíticas, econômicas e espirituais parecem definidas como querem nos fazer crer a imprensa.
“Nós só podemos nos proteger das contaminações psíquicas quando ficamos sabendo o que nos está atacando, como, onde e quando isso se dá”, segundo Jung (Presente e futuro. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 3).
Quer dizer: o nosso futuro depende de alcançarmos uma compreensão mais ampla possível de quem somos para nós e para o mundo, do quanto somos capazes de tomarmos decisões morais e definirmos a nossa conduta de vida conforme o julgamento próprio acerca da vida e do mundo que queremos, e não deixarmos que corporações empresariais, político-partidárias e/ou eclesiásticas o façam por nós. Tendências de comportamento aprisionam, melhor é optar pelo que tem a ver com você.

Bom 2015! E, como dizia Carlos Drummond de Andrade: “É dentro de você que o Ano Novo cochila e espera desde sempre” (Receita de Ano Novo).