domingo, 16 de novembro de 2014

Sejamos afetuosos com nossa “ninguendade” brasileira

            Temos vergonha de assumir a identidade psicossociocultural brasileira – e, por que não, a espiritual -, devido ao sentimento de inferioridade que nutrimos há séculos.
            O antropólogo Darcy Ribeiro (1922-1997), capta e aprofunda este sentimento no magnífico “O Povo Brasileiro”, onde afirma: “Nós brasileiros somos um povo em ser, impedido de sê-lo. Um povo mestiço na carne e no espírito, [...] fomos feitos e ainda continuamos nos fazendo. Essa massa de nativos oriundos da mestiçagem viveu por séculos sem consciência de si, afundada na ninguendade” (São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 410).
            Nossa “ninguendade” tem origens históricas, é passada de geração em geração no processo cultural e vivenciada simbolicamente pela consciência.
            Primeiro foi o nosso processo de colonização que dizimou milhares de povos indígenas e africanos; o controle dominante, que ainda permanece, de uma elite que se considera superior por ser detentora do capital financeiro, civilizada por ser consumista e, cristã; além da ideia de Sérgio Buarque de Holanda, com o seu “brasileiro cordial”, passando pelo pessimismo de Monteiro Lobato quanto à miscigenação racial, do saudosismo ingênuo da Ditadura Militar de 64, chegando aos dias atuais quando se discute a superioridade eleitoral dos sulistas frente aos nordestinos.
Para citar apenas um exemplo, do quanto tentamos recalcar nossa inferioridade, ostentamos no Hino da Proclamação da República o seguinte: “Liberdade! Liberdade! Abre as asas sobre nós! / Das lutas na tempestade dá que ouçamos tua voz! / Nós nem cremos que escravos outrora tenha havido em tão nobre País”.
A afirmação de Darcy Ribeiro só tem sentido psicológico se tocar o nível afetivo mais íntimo e fundamental da nossa identidade pessoal.
Parece-me não haver outro meio, senão pelos afetos, envolver o sentimento de vergonha e darmos a ele um destino da melhor maneira possível, porque todos nós compartilhamos a mesma história, a mesma cultura, o mesmo meio ambiente, além da mesma natureza humana traumatizada, que objetiva e historicamente, vê suas atitudes de superação comprometidas por uma grande indiferença.
Caso permaneçamos nesta atitude, tornamos história o que nos lembra Joseph de Maistre (1753-1821): “As falsas opiniões assemelham-se à falsa moeda inicialmente cunhada por grandes culpáveis e subsequentemente utilizada por pessoas honestas que, sem conhecimento de causa, perpetuam o crime” (citado por Michel Maffesoli, em: A alma brasileira: luzes e sombra. Petrópolis: Vozes, 2014, p. 27).
Estamos sim, sob a influência de ideias e imagens carregadas de energia emocional muito forte, a ponto de determinarem a nossa situação psíquica ainda que racionalmente não concordarmos com isto.
Nossa “ninguendade” acompanha-nos como um “vigia” que acompanha a “pari passu”, isto é, no mesmo passo, no mesmo ritmo, pedindo-nos uma atenção afetuosa.
“A cidade (o país) afeta e muito a psique. Melhor dizendo, a cidade (o país) é a psique. [...] O inconsciente coletivo, como disse Jung, é o mundo, e a psique não está em você, mas você está nela. [...] Fique em silêncio e veja quanta coisa (memórias, sonhos e reflexões) estará implorando por nossa simpatia, compreensão e defesa” (James Hillman. Cem anos de psicoterapia... e o mundo está cada vez pior. São Paulo: Summus, 1995, pp. 84, 86).

terça-feira, 11 de novembro de 2014

"O inferno são os outros"

Com a reeleição da Presidente Dilma Rousseff, no último dia 26 de outubro, a sociedade brasileira expôs um fator de suas entranhas psíquicas.
            Refiro-me a afirmações do tipo: “Chegou a hora de São Paulo se separar do resto deste país”; “Não somos brasileiros, somos paulistas”; “Como o meu Estado vota de uma forma tão diferente das outras partes do País?”
            Compreendo este fenômeno como a manifestação de uma consciência indiferenciada, cujas raízes estão na infantilidade ou ingenuidade de se acreditar que todos são iguais; que existe uma espécie de consciência grupal, coletiva ou global, sem a noção de indivíduos ou sujeitos próprios e independentes, como se a nação fosse uma única, coesa e unida família.
            Este é o pano de fundo da vida social, igualmente presente no seio familiar, nas empresas e outras instituições: opiniões, sentimentos, decisões, atitudes, pensamentos, desejos diferenciados de um grande grupo compreendidos como ameaças sociais, psicológicas, culturais e espirituais põem a perder valores, riquezas, relacionamentos.
            A descoberta que o outro é realmente outro, decepciona. Se alguém pensa, sente e toma decisões diferentes, pensamos logo em afastá-lo, condená-lo e, de preferência, puni-lo. As diferenças psíquicas entre nós nos deixam em situações desagradáveis, insuportáveis. Sejamos honestos: não suportamos que o outro realmente seja outro, sente outra coisa, quer outra coisa. Então, entende-se: “O inferno são os outros”.
            C. G. Jung diria: “Nada desperta mais pânico no primitivo do que o incomum, o que logo faz supor seja isto algo perigoso ou hostil. Também esta reação primitiva subsiste em nós! Facilmente, por exemplo, nos ofendemos se alguém não participa de nossa convicção. Ficamos injuriados quando alguém não acha bonito aquilo que consideramos belo. Ainda se persegue a quem pensa de modo diferente, ainda queremos impor aos outros a nossa opinião” (Civilização em transição. Petrópolis: Vozes, 2007, p. 131).
Neste contexto, procura-se definir se alguém é um de nós, ou simplesmente, outro. Se se conclui que se trata do outro, então desprezá-lo, relegá-lo a um status social, político, intelectual, cultural, espiritual inferior é considerado “normal”, e “separar-se” é uma das primeiras providências a serem tomadas.
Este fator psíquico herdado das sociedades mais primitivas está vividamente atuando nas concepções de vida de muita gente séria, determinada e considerada civilizada e desenvolvida, que despende grandes esforços em impedir que o outro seja outro. Não estamos imunes a esta tendência de ver o outro, senão como inimigo a ser combatido, como o “estranho”, “tão diferente de nós”, “inferior”, “perigoso”, “portador de desejos, vontades, sentimentos, crenças, pensamentos diferentes”, do qual “simplesmente queremos nos separar”.

Para conhecer melhor uns aos outros temos de nos aproximar mais da nossa humanidade comum, não temer a nossa diversidade, mas celebrá-la como expressão da liberdade e criatividade humanas, sem nos deixarmos ser levados pelo instinto de preservação defensivo.

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Por que você acredita em mentiras, maledicência, boatos?

            De acordo com os melhores códigos da imprensa em geral, as informações precisam ter origem em fontes com credibilidade. Se a fonte for considerada “duvidosa” simplesmente não se publica. E não foi isto que aconteceu com a última edição da revista Veja, quando afirmou que a presidente Dilma Rousseff sabia previamente do esquema de corrupção mantido na Petrobras, e que o ex-presidente Lula foi o seu articulador, segundo depoimento do doleiro Alberto Youssef, preso sob acusação de ser o comandante deste esquema e de outros, pelos quais já foi condenado.
“Não havendo tempo para a apuração completa, o jornalista deve publicar aquilo de que dispõe no momento, desde que rigorosamente checado, e pode estender sua investigação aos dias seguintes, se o fato for significativo o suficiente para voltar às páginas do jornal” (Manual de Redação da Folha de São Paulo. 2001, p. 25).
Informação sem investigação, em jornalismo, é considerada panfletagem. E, segundo o jornalista Luciano Costa: “Transformados em panfletos, os órgãos de comunicação reforçam a tendência que marca sua linguagem e seu discurso e que, de maneira muito clara, denota sua relação com o público” (Observatório da Imprensa. Edição 683, 02/03/2012).
Jornalismo se faz com provas, pistas, indícios, evidências, e não suspeitas. Jornalismo é exercido com equidistância, imparcialidade, isenção. Jornalismo não manipula os leitores, telespectadores e/ou os ouvintes. Jornalismo não vitima o público.
O povo brasileiro merece respeito e deve exigir dos meios de comunicação um jornalismo sério e responsável, fruto de uma investigação persistente e incansável.
E, para piorar ainda mais as coisas, as redes sociais disseminam toda espécie de factóides e meias-verdades que povoam o imaginário coletivo.
Como psicólogo junguiano, observo que esta situação demonstra a existência de um fator inconsciente fortemente vivo e ativo na psique brasileira.
Este fator consiste em se deixar levar por fofocas, inverdades, boatos, maledicências; ser possuído por um baixo senso crítico; confiar num enganoso domínio racional sobre as emoções a ponto de ver ameaçadas e, em alguns casos, não se importar de arruinar amizades antigas, laços familiares íntimos, relações de trabalho, credibilidades pessoais e convivências psicossocioculturais, como por exemplo, entre nordestinos e sulistas.
“Os tempos atuais e seus jornais parecem uma clínica psiquiátrica gigantesca, qualquer observador atento tem oportunidade de sobra para captar estes aspectos intuitivamente. Mas não se deve esquecer a seguinte regra: o inconsciente de uma pessoa se projeta sobre outra pessoa, isto é, aquilo que alguém não vê em si mesmo, passa a censurar no outro. Este princípio tem uma validade geral tão impressionante que seria bom se todos, antes de criticar os outros, se sentassem e ponderassem cuidadosamente se a carapuça que querem enfiar na cabeça do outro não é aquela que se ajusta perfeitamente a eles”, afirma C. G. Jung (Civilização em transição. Petrópolis: Vozes, 2007, p. 29).

Somente uma sincera, honesta e minuciosa investigação na vida própria, para verificar que aquilo que não reconhecemos em nós é transferido ou projetado inconscientemente para o outro.

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Conheça a Clínica

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Seja bem vindo!

E, daqui a quatro anos?

              Se existe uma questão realmente importante que temos de considerar neste momento da vida brasileira, envolvida em mais um dia de eleição, sem nos perdermos em questões religiosas, é a seguinte: E daqui a quatros anos, o(a) eleito(a) terá defendido quais interesses: egoístas, de grupos dirigentes ou da maioria da sociedade? Terá autocrítica e ajustada a sua consciência aos valores morais da administração da coisa pública? Será capaz de ir além dos processos eleitoreiros, isto é, perceberá as consequências das decisões que tomar quanto à aplicação dos recursos nos setores mais necessários à vida da maioria dos brasileiros? Exercerá seu mandato com discernimento ou como especialista em manipular as pessoas?
            Mas, e os eleitores: teremos aprendido com as escolhas políticas tomadas na ausência da reflexão? Perceberemos que não somos meras “unidades sociais” administradas, nutridas, vestidas, formadas e organizadas para a satisfação da massa, mas agentes de transformação social, graças à capacidade de decisão moral e de conduzir a própria vida?
            Para alguns, estas questões são inócuas, por não ser possível saber nada acerca do que se passará no próximo instante.
            Contudo, para Sigmund Freud (1856-1939), é possível e necessário fazermos esta reflexão.
            “As pessoas experimentam seu presente de forma ingênua, por assim dizer, sem serem capazes de fazer uma estimativa sobre seu conteúdo; têm primeiro de se colocar a certa distância dele: isto é, o presente tem de se tornar passado para que possa produzir pontos de observação a partir dos quais elas julguem o futuro. Quanto menos um homem conhece a respeito do passado e do presente, mais inseguro terá de mostrar-se em seu juízo sobre o futuro” (Freud. Abril Cultural, 1978).
            A reflexão de Freud é importante pelos seguintes motivos: Quando nos interessamos apenas pelo momento, sem perceber que a situação exige prudência e compreensão, principalmente quando o que está em jogo é o processo de massificação, o resultado pode ser frustrante, e nos levar a uma posição de inércia e desinteresse pela realidade social da qual não podemos fugir.
            Precisamos nos servir de “pontos de observação”, para que julguemos o futuro do País, levando em conta as condições atuais de vida, comparando com as do passado, e não resultados que intensificam ainda mais o sentimento de que somos apenas números estatísticos, mas como cidadãos responsáveis.
            O futuro é feito no presente, tendo como referência o passado, isto é, se quisermos que o nosso País seja melhor no futuro, temos de valorizar o que já foi conquistado.
            Daqui a quatro anos seremos menos inseguros ao julgar o futuro?

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Igrejas evangélicas e a política partidária

            A ambição dos candidatos à Presidência da República os leva a serem capazes de tudo, até mesmo de assumir posições contrárias às suas confissões religiosas.
            Em 2010, nas eleições presidenciais, o Brasil assistiu a um embate político-moral, posto pelos católicos e evangélicos, em torno do aborto.
            Hoje, a defesa dos juízos morais especialmente de grupos evangélicos, se dá quanto à defesa, por parte dos candidatos, do que se convencionou chamar “bandeiras da causa gay e criminalização da homofobia” (O Estado de São Paulo. 14.10, p. A10).
            Infelizmente, mais uma vez, o pano de fundo é o fundamentalismo religioso, que toma variadas formas na diversidade religiosa evangélica brasileira, quando defende seus interesses institucionais, em detrimento dos direitos individuais. Está em campo uma verdadeira batalha contra a sagrada liberdade de consciência.
Estas lideranças, ao que parece, estão acuadas pelos seus temores e inseguranças pessoais, apesar do discurso triunfalista que sustentam em suas reuniões, pouco se importando com os custos emocionais dos fiéis, nem aos próprios sofrimentos.

Referindo-se a igreja evangélica suíça (bem diferente da nossa), formada por pessoas de alto padrão de civilização, Carl Gustav Jung (1875-1961), reconhecendo a energia da religião no dinamismo psicossocial como “um grande risco e, ao mesmo tempo, uma grande possibilidade” daquele povo, nos ajuda a refletirmos, quando escreveu (desculpe-me pela longa citação, mas vale a pena ler e meditar): “Nosso mundo é sacudido e inundado por ondas de inquietação e medo. [...] Observe-se a incrível crueldade de nosso mundo supostamente civilizado – tudo isto tem sua origem na essência humana e em sua situação espiritual! Observe-se os meios diabólicos de destruição! Foram inventados por gentlemen inofensivos, cidadãos pacatos e respeitados e tudo aquilo que se possa desejar. E se tudo explodir, abrindo-se um inferno indescritível de destruição, parece que ninguém será responsável por isso. É como se as coisas simplesmente acontecessem. E, no entanto, tudo é obra do homem. Mas, como cada um está cegamente convencido de não ser mais do que uma simples consciência, muito humilde e sem importância, que cumpre regularmente suas obrigações, ganhando seu modesto sustento, ninguém percebe que toda a massa racionalmente organizada a que se dá o nome de Estado ou Nação é impelida por um poder aparentemente impessoal, invisível, mas terrível, cuja ação ninguém ou coisa alguma pode deter. Em geral, tenta-se explicar esse poder terrível pelo medo diante da nação vizinha (pessoas e/ou grupos), que se supõe estar possuída por um demônio maligno. E como ninguém pode saber em que ponto e com que intensidade está possuído e é inconsciente, simplesmente projeta seu próprio estado no vizinho. Torna-se então um dever sagrado possuir os maiores canhões e os gazes mais venenosos. [...] Cada vizinho se acha dominado pelo mesmo medo incontrolado e incontrolável. É fato bem conhecido nos manicômios que os pacientes que têm medo são muito mais perigosos do que os impulsionados pela ira ou pelo ódio” (Psicologia e religião. Petrópolis: Vozes, 1990, p. 53-54).