A festa do Carnaval nos reapresenta as estruturas psíquicas arquetípicas, isto é, uma mente que mantém o lado primitivo praticamente intocado, como se não tivesse havido evoluções biológicas, culturais, sociais, tecnológicas e até religiosas.
As fantasias que os foliões desfilam e dançam diante dos nossos olhos não são meras recordações saudosistas, mas expressões contemporâneas da rudeza arcaica que nos constitui como humanos. Animais e celebridades são retratados por máscaras que ressaltam características deformadas, como se ainda estivéssemos em eras pré-históricas. Danças e músicas conservam os ritmos dos povos desconhecidos que habitam as florestas mais longínquas. Os costumes e as leis sociais são subvertidos para facilitar a adaptação das pessoas à folia. As roupas, ou a sua ausência, como se não tivéssemos avanços tecnológicos capazes de nos vestir convenientemente. E o fator religioso pode ser observado no grande ritual do “carnevale” – adeus carne, em italiano, como as festas promovidas pela Igreja Cristã desde a Antiguidade, que eram denominadas Saturnalia, com danças e cantos de crianças lideradas por sacerdotes embriagados. “No meio da missa, pessoas fantasiadas com máscaras grotescas ou de mulher, de leões ou de atores apresentavam suas danças, cantavam no coro canções indecentes, comiam comidas gordurosas num canto do altar” (JUNG, C. G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Vozes: Petrópolis, 2003, p. 253, apud Du Cange, Glossarium mediae et infimae latinitatis, p. 481).
A diversão e o prazer proporcionados pela festa encobrem o seu real significado. E há quem prefira viver o tempo todo como num ininterrupto carnaval, sem perceber que a vida é feita de pares de opostos: puerilidade e sabedoria, profano e sagrado, morte e vida, amor e ódio, lealdade e traição, tristeza e alegria, palavras e ações ridículas e bom senso, e muitos outros, não sendo possível um excluir o outro. Somos feitos de ambivalências, inclusive quando estamos em festa.
Vivenciamos em nosso dia a dia esta cisão de personalidade. Ora nossas decisões são coerentemente civilizadas, ora não. Ora agimos como se não fossemos nós mesmos, ora queremos e forçamos que as normas sejam mais frouxas. Ora preferimos nos ocupar com coisas inferiores, como fofoca, por exemplo, daí o sucesso das telenovelas e reality-show que estimulam a curiosidade acerca da vida alheia, como se não tivéssemos de nos ocupar com nós mesmos. Ora a vaidade nos força a estratificar a ordem social e nos sentimos orgulhosos por pertencer a uma delas, ora nos envolvemos em movimentos de solidariedade humana. Ora erigimos tradições eclesiásticas rígidas e rituais inflexíveis, ora não toleramos solenidade.
O desfile de rua apresenta a constituição interna coletiva e a realidade interna de cada um de nós, apesar de na maioria das vezes não assumirmos com responsabilidade livre e voluntária esta realidade. Os desfiles coletivos revelam a falha nacional; os foliões e os não-foliões, seus defeitos pessoais.
Seria bom que aproveitássemos esta festa para conhecermos mais e melhor a nós mesmos. A máscara exterior e os adereços usados nos bailes, ou até mesmo a necessidade que alguns sentem de se manterem afastados, em retiros religiosos, falam a respeito de quem somos interiormente. Desfilamos a nós mesmos a todo tempo.
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