segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Inveja


          Quando foi a última vez que você falou, ouviu ou leu a respeito da inveja? Talvez, seja a primeira vez que você esteja lendo acerca deste sentimento.
A inveja é tema que frequenta várias rodas da filosofia à política, da arte à teologia, dos tratados de psicologia às revistas de celebridade. Sua dimensão atinge a todos: cultos e símplices, ricos e pobres, crianças e idosos, sãos e enfermos, anônimos e famosos, ateus e crentes, homens e mulheres. “Todo organismo é perpassado, de ponta a ponta, pela inveja do poder e pela desconfiança”, conforme Carl Gustav Jung (Presente e futuro. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 7).
Apesar da sua enorme influência sobre nós, na maioria das vezes, julgamos a inveja através de mecanismos moralistas: desde o “Não cobiçarás” consta na “lista negra” dos pecados capitais; daí despertar vários preconceitos e estigmas sociais vivenciados em todos os ambientes humanos: do lar ao trabalho, da igreja à política, da escola às ruas.
A inveja provocou o primeiro homicídio da história no seio de uma família; serve como pano de fundo das fofocas entre colegas; se presta aos bajuladores dos professores e dos patrões; fortalece os políticos demagogos; arregimenta “discípulos” amedrontados, e encoraja lobos em peles de carneiros no campo religioso.
Do latim “invidere”, invejar significa “não ver”. Por não tolerar o bem do outro, deseja-se possuí-lo, controlá-lo, ter poder sobre ele, porque é cego quanto a si mesmo. Daí vem o termo “mau olhado” e todas as “simpatias” contra o “olho gordo”.
Segundo Lideli Crepaldi, psicóloga e Mestre em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo: “O que caracteriza a inveja é uma frustração consigo próprio, é a tristeza com suas coisas, é a intolerância por se sentir menos que os outros. [...] Invejoso é aquele que, ao invés de sentir prazer com o que tem, sofre com aquilo que não é e com aquilo que não tem, sempre na comparação destrutiva do outro. [...] Ao sentirmos inveja de alguém o que desejamos é ocupar o lugar dessa pessoa e, por consequência, eliminá-la” (A inveja no mundo atual. Revista Comunicação e Inovação. São Paulo: 2010, p. 61).
Para o historiador, médico-psiquiatra e analista junguiano Carlos Amadeu Botelho Byington a inveja tem uma “função estruturante”, isto é, podemos utilizá-la como uma ferramenta favorável no desenvolvimento de nossa personalidade, ou na ampliação da consciência e autoconhecimento (Revista Psique Ciência & Vida, nº 3. São Paulo: Ed. Escala, 2005).
“Os homens têm inveja dos pássaros. Gostariam de voar”, conforme o teólogo protestante, educador e psicanalista Rubem Alves (Dogmatismo e tolerância. São Paulo: Loyola, 2004, p.7).
Quanto menos atenção dedicarmos a este sentimento, mais distantes ficamos de nós mesmos, maiores dificuldades sentiremos de perceber nossas limitações, e menor ficará a nossa capacidade de reflexão.
Neste início de ano é um bom momento para olhar para nós mesmos e conferir o tamanho que a inveja toma em nossa vida.

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Deixe um lugar para as surpresas


           Toda vez que pensamos sobre o futuro ficamos ansiosos.
A vontade de prevenir nos leva a prever.
“O que vem por aí?” – é a pergunta do momento. Mas, a resposta que tanto ansiamos é: Quem vai cuidar da gente se alguma coisa não sair conforme as nossas expectativas?
Na realidade, ansiedade não passa de uma pretensão de controlar as contingências, e isto camufla nossa busca por estabilidade, ou ao menos, a espera por alguém que nos guie na vida.
Administramos a ansiedade sem perceber que esta só aumenta à medida que se pretende diminuí-la, desejando até mesmo a sua total sujeição.
Para sentirmos que temos controle sobre a ansiedade desejamos “tudo de bom” uns aos outros, com uma “certeza” de que o simples desejar é suficiente para garantir que a “sorte” ou o “sucesso” sejam ininterruptos.
Contudo, quanto ao futuro deveríamos considerar a única coisa possível e necessária: sermos nós mesmos.
Ser você mesmo, segundo o historiador das religiões Joseph Campbell (1904-1987) é: “aquela sensação profunda de estar presente, de fazer o que você decididamente deve fazer para ser você mesmo” (Mito e transformação. São Paulo: Ágora, 2008, p. 25).
Para sermos nós mesmos precisamos mudar o foco da atenção: das tensões geradas pelo controle sobre circunstâncias imprevisíveis como obter mais dinheiro, alcançar maior prestígio social, por exemplo, para questões ligadas à vida interior, pois aquilo que nos parece inalterável devido aos prognósticos, pode se alterar como um vento suave. Tudo muda muito rapidamente. Uma profissão, antes considerada promissora perde espaço para outra que ganha maior importância devido às mudanças sociais, ambientais, familiares, econômicas, etc.
“Fazer o que você decididamente deve fazer para ser você mesmo” questiona os valores da cultura na qual estamos inseridos. Pode nos levar a mudanças que para alguns são “drásticas”, mas que ampliam o sentido da vida. É cruzar um caminho por onde ninguém passou, apesar das curvas e perigos.
Na verdade não existem trilhas confiáveis por onde andar. O caminho é feito enquanto se caminha. O seu caminho é só seu; em meu caminho não cabe você. Não existe nada mais seguro do que o caminho que vem de dentro. Mas, e as tradições? Elas não servem para ser seguidas, somente indicam por onde muitos já passaram.
É preciso viver a vida como ela é: limitada, grossa, monstruosa, feia, difícil, para transformá-la. A entrega ao incognoscível exige abstenção de qualquer exigência. Recomenda-se: humildade. Amargura, dureza, rancor, impaciência, auto-importância são ferramentas inúteis na destreza com a vida. É preciso deixar lugar para as surpresas para não cair em desespero nem em depressão.

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

O "presente" necessário

            “Nem sempre os bons são recompensados do mesmo modo que testemunhei por toda a vida os maus, os hipócritas e os ladrões ficarem ricos...” (Roberto Damatta. O Estado de São Paulo: 21/12, D10).
            É frustrante constatar esta realidade em todo o mundo, mas também, no País e na cidade “Símbolo de Amor e Liberdade”. Exemplos não faltam: as falcatruas do sistema capitalista, denunciadas pelo movimento mundial “Occupy Wall Street”; a lista de trinta e oito nomes dos operadores do “mensalão” do primeiro período do governo Lula; casos de corrupção e enriquecimento ilícito de pessoas ligadas à administração municipal, conforme as últimas publicações dos jornais de Marília.
            Diante destes e de muitos outros casos é preciso observar e fazer cumprir as leis, cuidado e responsabilidade jurídicas, para evitar que fiquem esquecidos e impunes, pois exemplos não faltam.
            Como podemos enfrentar estas situações?
            Dando-nos um presente!
Não, não é como recompensa, pois são situações que merecem repúdio e indignação.
É um “presente” que eu e você precisamos nos dar e, se nos dermos daremos ao mundo, mas se nos negarmos nos defraudaremos uns aos outros.
            Trata-se da capacidade de nos relacionarmos com nós mesmos, de ouvir e atender a voz de nossa alma, a única que detém os caminhos da vida.
            Segundo o psicólogo junguiano norte-americano John A. Sanford (1929-2005), o filósofo Sócrates (469-399 a.C) disse: “Uma espécie de voz que vem até mim, e quando vem, ela sempre impede de fazer o que estou pensando em fazer, mas nunca me incentiva a prosseguir. É isso que se opõe a que eu me envolva na política” (Destino, amor e êxtase. São Paulo: Paulus, 1999, p. 37).
            Antes de corrermos atrás de presentes para a festa do Natal, olhemos para dentro de nós e atendamos à voz que nos fala acerca de quem somos nós, e da realidade que nos cerca. Este é o “presente” de que necessitamos. A negligência à voz leva a muitos a se envolverem na política, daí tantos escândalos, mas também, nos leva a votarmos neles. Para ouvir e atender esta voz é preciso duvidar das convicções de que é possível nos enganarmos a nós mesmos e aos eleitores.
            A voz pretende criar em nós uma personalidade livre do pensamento dominante, estabelece uma independência à maioria, faz descrer das práticas que intentam impetrar como tradição a impunidade, recusa a se submeter a comportamentos como os vistos em casos de corrupção: acusações mútuas, tentativas de se livrar de compromissos assumidos nas sombras silenciosas dos gabinetes.
            Como o filósofo ateniense, a voz pode nos levar a sofrimentos: acusações infundadas, pressões morais de todo tipo, pois o sistema se vê perturbado e ameaçado em seu comportamento viciado e que menospreza o indivíduo.
            Para a nossa cidade que está envolvida em tantas dificuldades político-administrativas, cada um de nós pode se ofertar este “presente”, o mais verdadeiro, necessário, único e, melhor, acessível a todos. Ao menos nas urnas eleitorais que se aproximam.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Criatividade


            Em todo o tempo precisamos das pessoas – familiares, amigas, e desconhecidas. Basta o surgimento de uma necessidade para as envolvermos ao nosso redor. Na maioria das vezes, só percebemos o quanto as mobilizamos somente depois de passar pelo que nos acontece.
            Desde os preparativos para uma cirurgia a que me submeti há uns dez dias, envolvi mais de quarenta pessoas entre médicos (alguns amigos), funcionários e técnicos do setor da saúde da cidade, aos quais digo: muito obrigado!
            De todos e à maneira de cada um recebi carinho, respeito e atenção. Além disso, percebi que a integração de suas atitudes contribuiu para um bom resultado, apesar dos naturais desconfortos da recuperação.
            Mas, por que me ofereceram tudo isto?
Para mim foi muito mais do que a eficiência no cumprimento de suas obrigações, treinamento profissional ou acesso às melhores ferramentas tecnológicas.
Tanto eles quanto eu estávamos e continuamos sujeitos a todo tipo de necessidades, tanto do corpo quanto do espírito, às quais não temos como opor resistência alguma, senão nos submetermos.
Nossas necessidades desafiam nosso lugar no mundo; só a energia de lidarmos com elas pode nos salvar.
Tal energia é a nossa criatividade.
Criatividade é mais que inteligência.
Criatividade é a capacidade de buscar as melhores ideias para o atendimento de nossas necessidades; é não seguir códigos formatados que se impõem com tanta força e que ameaçam a nossa liberdade; é a capacidade de empreender ideias para o cumprimento de nossas tarefas em meio a tantas necessidades que nos envolvem, e que nos fazem ocupar bem ou mal nosso lugar neste mundo. Quanto melhor nos relacionarmos com a capacidade de ter ideias próprias e segui-las, melhor desempenhamos nossas funções.
A energia da criatividade é inconsciente, pois não é possível apreendê-la, posto que é livre.
Os antigos interpretavam-na como deixar-se ser conduzido por um “gênio” ou “espírito”.
Muitas mudanças significativas seriam provocadas na vida de todos nós se recuperássemos esta ideia, pois esta é a melhor maneira de nos relacionarmos com nós mesmos, por se tratar de nosso mais íntimo companheiro que nos ajuda, orienta e inspira em todas as nossas necessidades.
Isto explica porque algumas pessoas pareceram-me bem à vontade e espontâneas no atendimento de minhas necessidades, executando suas tarefas com gentileza, carinho, atenção, respeito, e algumas com um sorriso nos lábios.
Faxineiros e cozinheiros do hospital, enfermeiros dos turnos da noite e do dia, secretárias, atendentes dos laboratórios, médicos, e alguns amigos e familiares continuem atendendo à voz de seus “gênios”. Quanto a mim, vou procurar ouvir mais ao meu.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

A “boa colheita” de um delírio


            De onde as pessoas tiram tantas certezas a respeito do amanhã? Pois é muito comum ouvirmos: “Vai dar tudo certo!”
Parece que as pessoas não aceitam a possibilidade de que as coisas possam não sair como esperavam e por isso, quando tudo ocorre como planejavam atribuem o sucesso ao simples desejo de terem querido que tudo desse certo, sem perceberem, no entanto, que o infortúnio também pode nos acontecer.
Desculpe, mas ingenuidade não garante certeza de coisa alguma. A ingenuidade não é o melhor recurso para enfrentar o pessimismo, a depressão, nem muito menos, como forma de superstição.
A reflexão que nos importa é: por que não queremos admitir a total falta de controle sobre todas as coisas e/ou situações?
Admitamos: atribuímos à nossa presunção o caráter de ingenuidade.
Em nenhuma situação podemos ser presunçosos, porque nenhuma circunstância é simples. Argumentos a favor dos avanços tecnológicos não passam de presunção, portanto, nos afastam do necessário limite a que a vida está sujeita.
Para Friedrich Nietzsche (1844-1900) a presunção é: “erva daninha que arruína toda boa colheita dentro de nós” (Humano, demasiado humano. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 195). Do mesmo filósofo alemão: “Há espíritos livres e insolentes, que gostariam de ocultar e negar que são corações destroçados, orgulhosos, incuráveis” (Além do bem e do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 169).
Carl Gustav Jung (1875-1961) nos ajuda a compreender esta questão quando se refere ao perigo de nos entusiasmarmos em relação às coisas e/ou situações da vida, boas ou más (lembrando que entusiasmo quer dizer “Deus em nós”), a ponto de não sentirmos a infinita diferenciação entre nós e a divindade.
Toda vez que transgredimos os limites da humanidade somos presunçosos. Na linguagem psicológica, a presunção é um delírio.
            Segundo a teoria junguiana, delírio é: “Um julgamento baseado no intelecto ou no sentimento, ou que deriva de percepções reais. Mas, na realidade, isto é, baseado em fatores inconscientes dentro dele (o paciente)” (SAMUELS, A. Dicionário Crítico de Análise. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1988, p. 60).
            Para citar apenas um exemplo de delírio: devido ao “grande” número de cirurgias da vesícula terem sido bem sucedidas, graças as avanços médicos nesta área – “percepções reais” - intelectual e/ou sentimentalmente julgamos ser uma coisa “simples”. Portanto, todos que passam por situações semelhantes não devem sentir medo, nem insegurança.
            Relacionando as ideias de Nietzsche e Jung: se compreendermos o significado simbólico dos nossos delírios, podemos fazer uma “boa colheita”.
            Podemos fazer uma “boa colheita”, ao nos perguntarmos, por exemplo: Por que queremos que todas as nossas situações sejam somente positivas? Para nos sentirmos melhores do que o nosso próximo?
As experiências que a vida nos oferece, ainda que não sejam as melhores, podem encher nossos celeiros de sabedoria, paciência, amor e respeito pela própria existência.

O meu problema sou eu. O seu problema é você


            Negamos nossas necessidades, e por isso dogmatizamos os problemas que nos surgem. Estamos convictamente convencidos de que as situações ligadas à política, meio ambiente, cultura, saúde, direito, religião, economia e às relações interpessoais são os nossos reais problemas. Queremos, a todo o momento, saber o que aconteceu de errado, o que houve para a situação se complicar. E, não faltam aqueles que se consideram “especialistas” em problemas.
Segundo James Hillman (Uma busca interior em psicologia e religião. São Paulo: Paulinas, 1984), criador da psicologia arquetípica, morto no último dia 27 de Outubro, isto se deve ao ideal protestante ocidental que busca a plena e irrestrita independência do “eu” frente a todas as realidades que o cercam, por não admitir a ideia de que o homem é um ser dependente, fraco e que deve submissão a outros. Contudo, na opinião do psiquiatra suíço Carl Gustav Jung (1875-1961), se o protestante deseja contribuir para a melhoria do mundo, mesmo sem a rigidez dogmática e a ausência de rituais que facilitam a convivência com o outro, ele precisa: “descobrir coisas até então inconscientes, [...] perceber as forças impessoais que se ocultam em seu interior” (Psicologia e religião. Petrópolis: Vozes, 1990, p. 54).
Ao considerar que os problemas estão fora de mim e que preciso resolvê-los, permaneço inconsciente acerca de mim mesmo, isto é, vivo como se tivesse poder de tirar o “cisco do olho alheio, sem perceber a trave que existe no meu”, conforme o ensino das Escrituras Sagradas.
Na realidade, nosso problema somos nós mesmos. O meu problema sou eu. O seu problema é você. Nossos problemas revelam quem somos. Negamos energicamente esta realidade, porém nos submetemos a eles como se fossem exigências. Muitos deles não precisavam se tornar realidades, mas quando tomam a forma real, a solução está em resolvermos a nós mesmos.
Jung, em outro lugar afirma: “A vida não vem das coisas, mas de nós” (O livro vermelho. Petrópolis: Vozes, 2010, p. 239).
            A verdadeira dimensão da vida está em nós, e não em nossas capacidades de compra, inteligência ou esperteza em nos enganarmos a nós mesmos e aos outros.
“Tu queres fugir de ti, para não teres de viver aquilo que não foi vivido até agora. Mas não podes fugir de ti mesmo. Isto está todo o tempo contigo e exige realização. Se te colocares cega e surdamente esta exigência, tu de colocarás cega e surdamente contra ti mesmo. Então jamais alcançarás o saber do coração. O saber do coração é como teu coração é. De um coração mau, conheces coisas más. De um coração bom, conheces coisas boas. Para que vosso conhecimento seja completo, considerai que vosso coração é ambos: bom e mau” (O livro vermelho. p. 233-234).
Precisamos “realizar” a nós mesmos, ou seja, ver e ouvir o que realmente somos interiormente, se quisermos adquirir alguma sabedoria na administração daquilo que existe no exterior que nos rodeia.
Ainda no Livro Vermelho (p. 235), Jung nos lembra da fábula do “santo que, ao sentir nojo dos doentes da peste, tomava o pus de suas feridas e notava que tinha um odor como o das rosas”. Precisamos resistir a tentação de atribuir às contingências a razão de nossa infelicidade.