Para alguns o atentado contra o
semanário Charlie Hebdo, no último 07, pode se constituir em mais uma tentativa
de impedir a liberdade de expressão. Para outros, entretanto, a discussão
acerca das restrições de liberdade que estão em vigor desde o 11 de setembro de
2001, em vários países do mundo, deve trazer maiores problemas ainda, pois
conforme o filósofo italiano Giorgio Agamben (1942-), a pretexto de segurança
pública, as condições de exercício da liberdade são tão restritivas quanto na
época do fascismo (Instituto Humanitas Unisinos. São Leopoldo, 16.01.15).
E, as religiões, qual seria o papel
que deveriam exercer nesse debate?
Em abril de 1996, o filósofo francês
Paul Ricoeur (1913-2005), de confissão protestante, e o teólogo católico suíço
Hans Küng (1928-), debateram a questão. A conversa foi longa, mas transcrevo alguns
trechos, para a nossa reflexão:
Ricoeur: As religiões têm inspirado guerras, e no planeta se continua
ainda a matar em nome de Deus. Há ainda na Europa lugares onde se mata em nome
de Deus. Crê que esse obstáculo possa ser transposto, ao mesmo tempo, por
cristãos, mas igualmente por outras religiões?
Küng:
Não haverá paz duradoura entre as nações, enquanto não houver paz entre as
religiões. A paz entre as religiões é uma das componentes determinantes para
que se possa atingir a paz completa.
Ricoeur:
É preciso antes de mais saber por que esta
tendência para a violência existe na própria religião e como nós podemos
purgá-la, digamos assim, do próprio interior dessa religião? Penso, por outro
lado, que essa autocrítica deveria partir disto: que é do próprio fundo de uma
convicção forte que há o perigo da violência.
Küng: Sim, de fato, é isso mesmo. Citamos muitas
vezes o Islã, a título de exemplo. Há muitos cristãos que são fundamentalistas
e que gostariam de lançar já aqui uma guerra contra aqueles que não acreditam,
contra os agnósticos, contra os ateus, e esta guerra poderia, ela também,
chegar a atos de violência. É preciso então empreender uma reflexão sobre a sua
religião, e creio que toda a tradição religiosa tem páginas negras na sua
história.
Ricoeur: Como purificar então essa convicção da força de uma Palavra
que nos precede, da tendência a impô-la pela violência?
Küng:
Muitas
vezes, aqueles que são mais agressivos em matéria religiosa, são aqueles que
não estão muito seguros da sua fé.
Ricoeur: A esse respeito, se tivesse de
dizer uma palavra de esperança, seria para afirmar que haverá sempre, aqui,
ali, em cada confissão, uma palavra forte que dirá: não, não mates, diz a
verdade, sê justo, respeita os fracos.
É
como nos lembra Carl Gustav Jung (1875-1961): “São as pessoas muito piedosas
(religiosas) que, inconscientes de seu outro lado (mal), desenvolvem estados de
espírito verdadeiramente infernais, que as torna insuportáveis para seus
próximos. Mas conviver com um santo pode desenvolver um complexo de
inferioridade ou até mesmo uma violenta explosão de imoralidade entre
indivíduos menos dotados de qualidades morais. A moral parece ser um dom
equiparável à inteligência. Não é possível incuti-la, sem prejuízo, num sistema
ao qual ela não é inata” (Psicologia e religião. Petrópolis: Vozes, 1990,
p.81).
É
preciso que os religiosos tenham a forte convicção do mal a que são capazes de
cometer, tão intensa quanto têm acerca de seus conteúdos doutrinários,
dogmáticos.
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