domingo, 18 de janeiro de 2015

Papel das religiões em casos como o do Charlie Hebdo

            Para alguns o atentado contra o semanário Charlie Hebdo, no último 07, pode se constituir em mais uma tentativa de impedir a liberdade de expressão. Para outros, entretanto, a discussão acerca das restrições de liberdade que estão em vigor desde o 11 de setembro de 2001, em vários países do mundo, deve trazer maiores problemas ainda, pois conforme o filósofo italiano Giorgio Agamben (1942-), a pretexto de segurança pública, as condições de exercício da liberdade são tão restritivas quanto na época do fascismo (Instituto Humanitas Unisinos. São Leopoldo, 16.01.15).
            E, as religiões, qual seria o papel que deveriam exercer nesse debate?
            Em abril de 1996, o filósofo francês Paul Ricoeur (1913-2005), de confissão protestante, e o teólogo católico suíço Hans Küng (1928-), debateram a questão. A conversa foi longa, mas transcrevo alguns trechos, para a nossa reflexão:
Ricoeur: As religiões têm inspirado guerras, e no planeta se continua ainda a matar em nome de Deus. Há ainda na Europa lugares onde se mata em nome de Deus. Crê que esse obstáculo possa ser transposto, ao mesmo tempo, por cristãos, mas igualmente por outras religiões?
Küng: Não haverá paz duradoura entre as nações, enquanto não houver paz entre as religiões. A paz entre as religiões é uma das componentes determinantes para que se possa atingir a paz completa.
Ricoeur: É preciso antes de mais saber por que esta tendência para a violência existe na própria religião e como nós podemos purgá-la, digamos assim, do próprio interior dessa religião? Penso, por outro lado, que essa autocrítica deveria partir disto: que é do próprio fundo de uma convicção forte que há o perigo da violência.
Küng: Sim, de fato, é isso mesmo. Citamos muitas vezes o Islã, a título de exemplo. Há muitos cristãos que são fundamentalistas e que gostariam de lançar já aqui uma guerra contra aqueles que não acreditam, contra os agnósticos, contra os ateus, e esta guerra poderia, ela também, chegar a atos de violência. É preciso então empreender uma reflexão sobre a sua religião, e creio que toda a tradição religiosa tem páginas negras na sua história.
Ricoeur: Como purificar então essa convicção da força de uma Palavra que nos precede, da tendência a impô-la pela violência?
Küng: Muitas vezes, aqueles que são mais agressivos em matéria religiosa, são aqueles que não estão muito seguros da sua fé. 
Ricoeur: A esse respeito, se tivesse de dizer uma palavra de esperança, seria para afirmar que haverá sempre, aqui, ali, em cada confissão, uma palavra forte que dirá: não, não mates, diz a verdade, sê justo, respeita os fracos.
É como nos lembra Carl Gustav Jung (1875-1961): “São as pessoas muito piedosas (religiosas) que, inconscientes de seu outro lado (mal), desenvolvem estados de espírito verdadeiramente infernais, que as torna insuportáveis para seus próximos. Mas conviver com um santo pode desenvolver um complexo de inferioridade ou até mesmo uma violenta explosão de imoralidade entre indivíduos menos dotados de qualidades morais. A moral parece ser um dom equiparável à inteligência. Não é possível incuti-la, sem prejuízo, num sistema ao qual ela não é inata” (Psicologia e religião. Petrópolis: Vozes, 1990, p.81).

É preciso que os religiosos tenham a forte convicção do mal a que são capazes de cometer, tão intensa quanto têm acerca de seus conteúdos doutrinários, dogmáticos.

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