sábado, 22 de outubro de 2011

As crianças estão sofrendo, e nós também


            O abandono das crianças à sua própria sorte é mais comum do que imaginamos. A mitologia narra que Hermes, Zeus, Horus, Hércules tiveram de sobreviver por conta própria. Moisés e Jesus, segundo as Sagradas Escrituras, foram salvos quando estavam em circunstâncias perigosas. Sem falar nas fábulas, como “João e Maria”, coletada por Jacob Grimm (1785-1863) e Wilhelm Grimm (1786-1859).
            Lamentavelmente hoje não é diferente; as crianças vivenciam situações muito parecidas. Incapazes de evitá-las, perpetuamos em nossas relações com as crianças, as experiências mais traumatizantes que uma pessoa pode ter. Mas, por que é assim?
Na realidade, todas as narrativas históricas e/ou mitológicas falam acerca das nossas experiências psíquicas internas, dos adultos e das crianças. Podemos afirmar que são histórias verdadeiras porque se repetem todos os dias, e reconhecemos os efeitos que reproduzem. Não conseguimos evitá-las porque são possibilidades herdadas, coletivamente. Uma herança invisível, mas presente a ponto de Vinicius de Moraes (1913-1980) destacar em “Cotidiano nº 2”, onde nos diz: “Acordo de manhã, pão sem manteiga / E muito, muito sangue no jornal / Aí a criançada toda chega / E eu chego a achar Herodes natural”.
São poucos os que admitem a ambiguidade de sua natureza. As mazelas sociais, culturais, psicológicas e espirituais que podemos cometer contra as crianças, contra a nós mesmos, e contra o próximo são sempre uma possibilidade. Ao mesmo tempo posso ser asceta e libertino, santo e assassino, virtuoso e grosseiro.
As crianças não têm a capacidade de refletir a respeito desta herança, mas elas revelam-na nas relações com outras crianças, e até mesmo com os adultos, e especialmente com os pais. Elas não sabem discernir o quanto ser uma criança lhes afeta. Elas não conhecem a dimensão que os seus sentimentos infantis, acerca da vida, influenciam a existência humana, em todas as suas dimensões, quer participam delas ou não.
Aos adultos, especialmente aos pais e professores, cabe a tarefa de reencontrar o projeto de vida que perderam com a passagem do tempo, se quiserem que a relação com as crianças seja mais verdadeira. Como afirma o analista junguiano Mario Jacoby: “Para se compreender o mundo da criança, é imperativo entrar em contato com seu próprio lado infantil e adquirir consciência das suas próprias necessidades de autorrenovação, de estimulação, de satisfação e de autorrealização” (Psicoterapia junguiana e a pesquisa contemporânea com crianças: padrões básicos de intercâmbio emocional. São Paulo: Paulus, 2010, pp. 26-27).
Perguntemos a nós mesmos: o que a minha “criança interna” tem a falar sobre a minha vida? Onde está a espontaneidade e a alegria que marcaram a minha infância, antes de sofrer os golpes que me mudaram tanto? Como posso salvar-me das “águas do Nilo”, “da matança de Herodes”, “da bruxa malvada”?
As respostas a estas e outras questões redundarão em renovação, estímulos, satisfação e realização, como pensa Jacoby. Mas, se não as respondermos não somente nós sofremos, como também as crianças apesar de algumas estarem vestidas com boas roupas, terem acesso ao mundo da informação ou ganharem presentes.

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