sábado, 1 de outubro de 2011

VIII InterQuinta-Jung - Debate: "UP - Altas Aventuras" - Comentário da animação - 29.09.11


Não é fácil analisar um filme em sua completude. “Se nos concentramos em um tema, deixamos escapar o todo. Se vamos ao conjunto, podemos deixar fugir os detalhes, tão importantes”, afirma Luiz Zanin Oricchio[1], crítico de cinema. Consciente deste risco, proponho uma refleção sobre o filme “UP! Altas Aventuras”, ao menos de alguns fragmentos que despertaram a minha atenção.
Gosto de pensar nos filmes como se fossem sonhos, pois, tal como na vida onírica, quando assistimos a um filme não interferimos no roteiro, não escolhemos as personagens, os cenários; ficamos à mercê da direção. Por isso nos emocionamos, apreciamos ou não, e até interpretamos através das associações que nos ajudam a ampliar os símbolos. Como qualquer produção cinematográfica,  podemos analisar este filme de animação como se fosse um sonho, no qual todos os espectadores são convocados a tomarem consciência de questões ligadas a personalidade de cada um representadas em suas imagens. Como num sonho, todos os elementos simbolizam algum traço de nossa personalidade sobre os quais podemos fazer variadas associações. Obviamente, o objetivo aqui é apenas mostrar que entre as personagens e nós, somos muito parecidos.
Quando o filme em análise é de Animação, é preciso levar em consideração que se trata de um mundo de seres e, portanto, pode representar o uso de onipotência criativa indisfarçável para lidar com temas que são tão perturbadores que exigem um alto grau de invulnerabilidade emocional. A partir dessa perspectiva o uso de atores tenta esconder o uso de fantasia e de fazer imagens parecerem reais. Animação, por outro lado, esconde a realidade perturbadora para trás de certas imagens, mas expõe o nível de controle criativo necessário para que sejamos capazes de lidar com as experiências a que aludem. Aparentemente, a forma de animação pode ser considerada particularmente útil em transmitir ao público (infantil e adulto) em uma maneira razoavelmente segura temas que, se apresentados também de forma realista, seria muito perturbador.
         Os Estúdios Walt Disney, e toda a cinematografia mundial sabem representar o nosso mundo interior, captam o jeito humano de ser (arquétipos e complexos), por isso assistimos (consumimos) os seus produtos.
         Qual o jeito humano de ser que a animação “UP! Altas Aventuras” nos apresenta? – o mau humor, como uma emoção, um afeto. Carl pode nos irritar bastante, mas seu estado de humor é muito parecido com o nosso, muitas vezes.
         O mau humor é uma emoção incontrolável, nos tira a tranquilidade. É uma emoção que nos isola do mundo que nos cerca. O mau humor é uma banda sinfônica desafinada que toca sem parar a mesma melodia, que provoca muita confusão, mas que serve para nos chamar a atenção para algo que vai além do simples barulho.
Mas, não teria nada de positivo numa emoção tão forte como esta? E, se procurassemos no mau humor novas formas de pensar, de atuar e de sentir, que não encontramos em outras emoções?
Conforme a psicóloga Liliana Liviano Wahba[2], frequentemente, o mau humor é uma manifestação da sombra pessoal, daqueles aspectos reprimidos do indivíduo ou, pelo menos, pouco potencializados. Para Wahba: “O estado que identificamos como mau humor pode ser o veículo de expressão incipiente do arquétipo de sabedoria tentando manifestar-se. O arquétipo de sabedoria estimula, incita, traz versatilidade e originalidade nas ideias. Ele torna as pessoas criativas, ocasionando ideias felizes, poder, entusiasmo e inspiração. Como é um evento psíquico, espontâneo, não está sujeito ao nosso controle” (WAHBA, 1992, p. 52).
Para que a libido (energia da vida) flua livre e plenamente, precisamos saber combinar as visões do mundo infantil com a realidade adulta, diria Sigmund Freud (1856-1939). A desarmonia gera a insatisfação, que por sua vez é vivenciada como mau humor, pois quanto mais fora da vida nos sentimos maior será a nossa “cara feia” e os destemperos que bem sabemos a que nos submetemos a nós e aos outros. Ficamos mau humorados para aprendermos a ficarmos bem humorados, e para isto precisamos aprender a rirmos de nós mesmos.
Segundo a psicóloga Aracéli Martins: “Negar o mau humor através de ‘atitudes simpáticas’ e de uma visão mais ‘otimista’ da vida significa deixar de lado a chance de conhecimento, e de entrar em contato com aquilo que é difícil, exatamente por estar negligenciado”[3].
         Fragmentos da animação que me chamaram a atenção:
Carl Fredricksen – introvertido; de família tradicional; mais idoso que Ellie (Carl acredita que se acomodar às exigências de Ellie, obterá a sua aprovação, e será feliz); vendedor de balões; aposentado; deseja um filho. Carl leva uma vida estagnada como as rochas da Paradise Falls, a cachoeira localizada no Parque Nacional Canaimã, Venezuela.
Paradise Falls nos apresenta dois símbolos – a montanha e a água. A queda da água, nos dá conta de um movimento descendente, e a montanha, de um movimento ascendente. “A cascata é o símbolo da impermanência oposto ao da imutabilidade. Embora, como entidade, a cachoeira permaneça, ela não é, entretanto, jamais a mesma. [...] As gotas d’água que formam a cachoeira são renovadas a cada segundo. [...] Pode-se encontrar sua significação simbólica de emblema do movimento contínuo, de emblema do mundo onde os elementos mudam incessantemente, ao passo que a forma permanece inalterada”[4].
Para se relacionar melhor com a vida, Carl precisa escalar a montanha. Ele está diante das qualidades superiores da sua alma, que podem levá-lo ao cume de seu desenvolvimento, à individuação. Carl precisa movimentar-se internamente, ainda que o mundo externo permaneça o mesmo. Ele faz isto, quando se livra de todos os objetos que carrega em sua casa, tornando-a o suficientemente leve para se aventurar num mundo rochoso, imóvel.
A viuvez o fez se trancar para a vida – 5 fechaduras e um trinco à porta o separam da vida; sua agressividade o levava a desejar a morte de Russuell; ele estava unilateralmente dirigido, e passivamente entregue ao seu mau humor; impertinente e egoísta, com toda a libido voltada para dentro, lutava contra a sua vontade mais íntima.
Carl é mau humorado, segundo o site oficial da Disney “é rabujento”[5]; seu mau humor o coloca em situações que cada vez aumenta ainda mais o seu mau humor – o seu mau humor nasceu quando assistiu a um filme que apresentava as aventuras do explorador Charles F. Muntz, que foi banido da academia científica acusado de falsidade ideológica, quando apresentou um esqueleto falso do pássaro misterioso que vivia nas selvas amazônicas.
Conforme Jung: “todas as neuroses começam com a ideia de que um tal inimigo é externo. Alguém de fora faz tudo contra nós; superiores ou subalternos possuem uma espécie de raio que nos faz pular. Cada neurótico tem uma bête noir (estraga prazeres): o pai ou a mãe, esta ou aquela pessoa que tem más intenções. Ou se uma certa coisa não tivesse acontecido, ou se as circunstâncias fossem diferentes, tudo estaria bem. Mas coloque-os em ambientes diferentes, e verão que as velhas coisas recomeçam a acontecer porque carregam o inimigo dentro de si”[6].
Desde a infância, Carl tem dificuldades de ultrapassar obstáculos – pular tocos de árvores, rachaduras e pedras. Expulso do “paraíso” que acreditava viver, tendo Muntz como seu herói, passou a acreditar no “já que não é perfeito, não quero mais”, isentando-se da responsabilidade de viver na imperfeita sociedade humana, por isso abre mão de suas próprias aventuras e vive somente as aventuras de Ellie. Só mais tarde, ao abrir o livro de aventuras, tem sua consciência ampliada, ao ler o recado de Ellie: “Obrigado pela aventura. Agora, embarque numa nova!”.
Quando se vive a própria aventura, quebra-se padrões rígidos e se faz novos ajustes – Carl ajusta a sua bengala para lutar contra Muntz.
Ao resolver fazer a viagem, valoriza a sua função transcendente, até então menos desenvolvida, isto é, se vale de sua ingenuidade, não teme cometer tolices, e são estas que o tira da situação que se encontrava – balões, nas velas que dirigem a casa utiliza remendos de tecidos, bússola de brinquedos, um moedor de pimentas serve de leme.
         Carl temia consentir a entrada de um elemento desestruturante em sua vida, principalmente porque toda a sua energia estava canalizada para o mundo previsível dos seus deveres. Carl queria manter-se no controle da sua vida, mesmo sem perceber que era a sua lucidez que o deixava tão mau humorado, excessivamente sério.
         O humor “nasce do movimento expansivo das energias vitais em direção ao prazer e à liberdade. [...] A imaginação que se expressa pelo riso descontrai sem comprometer a seriedade”[7].
         Ao perceber que sua vida é a sua aventura, abre mão da bengala, sente que não precisa mais de apoios externos – de Ellie, de sua profissão de vendedor de balões, e brinca rindo de suas próprias imperfeições quando pretende trapacear a Russell na contagem de objetos vermelhos e azuis.
         Ellie – extrovertida – “a aventura está lá fora”; trabalha no zoológico da cidade; pensa bastante no trabalho, tanto que nas nuvens enxerga animais; deseja ter vários filhos; estéril; bem humorada.
         Ambos percebem, no final da vida, que nada fizeram para conquistar a aventura de viver; permaneceram na mesma casa, conservando a tediosa rotina doméstica, tratando das coisas mais comuns da existência: ajuntam dinheiro, mas para gastar com médico (ela, vai ao ginecologista, ele, ao ortopedista), pneus novos para o carro, reforma da casa; o mundo se transformava – a casa num canteiro de obras; seu contato com o mundo era através de uma caixa de correios, que ele tira a poeira. Ellie adoece e morre.
         Russell – explorador selvagem da tribo 54, Sweat Lodge 12. O diálogo com Carl é muito significativo: “ – O sr. precisa de alguma assistência, hoje? NÃO. – Posso ajudar a atravessar a rua. – NÃO. – Eu posso ajudá-lo a cruzar seu jardim. – NÃO. – Eu posso ajudá-lo atravessar a sua varanda. – NÃO. – Bem, tenho de ajudá-lo a atravessar algo. – NÃO, ESTOU BEM”.
         Russell está para Carl como Parsifal está para o Fisher King, conforme nos conta o autor de He[8]. Johnson interpreta o Mito de Parsifal e a procura do Santo Graal (psicologia masculina). Carl como o “rei pescador” estava ferido por ter de viver a velhice, mas sem ser rabujento, reclamão. Enquanto lutava para manter unidos os mundos interno – sua relação com Ellie, e externo – a realidade dura e desafiadora, que exige atitudes solitárias e responsáveis, Carl não conseguia relacionar-se bem com a vida, isto é, o seu processo de individuação retardava. Carl precisava ser alguém por si mesmo, e não podia ser através de Ellie. Ser alguém por si mesmo é encontrar o seu lugar no mundo, é não estar mais perdido. Russell aparece na vida de Carl como Parsifal aparece na vida do “rei pescador”. Assim como Parsifal, Russell põe dinamismo e renovação na vida de Carl.  Para se livrar de suas feridas, todo homem busca por soluções, e não as encontrando reclama, queixa-se o tempo todo, e para aliviar os lamentos, passa a ser por exemplo, um consumidor voraz, um paquerador. “Se um homem tiver acesso ao inconsciente outra vez, isso vai ajudá-lo, pois a cura definitiva advirá da complementação do processo que inadvertidamente iniciou quando ainda jovem” (JOHNSON, p. 26).
         Durante a viagem até a Paradise Falls, Carl e Russell enfrentam uma forte tempestade. Russell avisa que enfrentarão “nuvens cumulonimbus”. São nuvens com a forma de grandes montanhas, e com o topo em forma de bigorna. Constitui-se de gotículas de água em suas partes inferiores e por cristais de gelo nas superiores. “Seu aspecto é sombrio e ameaçador, habitualmente sendo acompanhado por trovões, relâmpagos e fortes pancadas de chuva”[9].
         Não é interessante dizermos sobre uma pessoa mau humorada: “O tempo fechou”? Esta é a razão, porque nas histórias em quadrinhos quando as personagens estão deprimidas, insatisfeitas e/ou mau humoradas são colocadas sobre suas cabeças nuvens escuras.
         Depois de enfrentarem a tempestade Russell, afirma para Carl: “Eu consegui, pilotei a casa”. Mas, Carl ainda continua reclamando: “Vim até aqui para ficar empacado no lado errado deste monte de pedras?” Carl não percebe que ele é como aquela cordilheira rochosa (inclusive seu rosto tem a forma quadrada, diferente do rosto de Russell, redonda). Russell diz para Carl: “Se eu puder ajudá-lo, o sr. assina a minha especialidade?” Russell não aceita a imobilidade, mas Carl quer calar a voz do espírito de aventura, por isso lhe diz: “Vamos fazer uma brincadeira. Vamos ver quem consegue ficar quieto por mais tempo”.
         Carl não sabia que é impossivel reprimir o espírito. Logo surge Kelvin (o pássaro), e Dug (o cachorro que fala). Dug funciona como a fada, que interfe nas piores situações, revertendo-as a favor de Carl, com humor e submissão, como um gênio ao seu amo. Tanto que chama Carl de: “Meu dono”. Mais uma vez, o elemento ingênuo e tolo que liga o mundo da imaginação, se faz presente, e que tanto o velho quanto a criança precisam para viverem de bem com a vida.
         “O humor e o jogo têm o dom de preparar e conduzir, pois funcionam como aliados em nossas conquistas tanto no âmbito do mundo concreto quanto nos domínios do espírito”[10].
         Charles F. Muntz – acredita que a aventura é só no mundo externo, por isso busca ter prestígio e reconhecimento científico o tempo todo. Muntz é o Carl antes de embarcar a sua própria aventura.
         A ópera Carmen de Bizet é citada por C. G. Jung: “Bizet embriagou-me e me subjugou como as vagas de um mar infinito [...] as melodias da Carmem me acompanharam. A música de Bizet envolveram-me numa atmosfera cuja profundidade e importância apenas intuí, sem poder compreendê-la. Meu estado de espírito tornou-se primaveril, quase nupcial nessa semana cuja aparência exterior era sombria e cheia de brumas, do dia 1º ao dia 9 de dezembro (1900)”[11].

Sílvio Lopes Peres – Teólogo, Pedagogo,
Mestre em Ciências da Religião,
Especialista em Docência no Ensino Superior,
Acadêmico 5º Ano de Psicologia
silviosilvia@ig.com.br
http://psijung.blogspot.com/


[1] O sentido do eterno. O Estado de São Paulo. São Paulo: 12/08/2011, p. D5
[2] WAHBA, L. L. O mau humor: um apelo do espírito. Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica, Vol. 10. São Paulo: Terragraph Artes e Informática S/C Ldta, 1992.
[3] MARTINS, A. Entendendo o Humor. Paulus: São Paulo, 1994, p. 34.
[4] CHEVALIER, J. e GHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. Rio de Janeiro: José Olympio, 1995, p. 160.
[5] Disponível em:
http://www.disney.com.br/filmes/dvd/up/index.html - Acesso em 01.09.11.
[6] JUNG, C. G. Princeton University Press, Nova Jersey, Bolingen Series, XCIC, 1988, apud MARTINS, A. Entendendo o Humor. Paulus: São Paulo, 1994, p. 40.
[7] MARTINS, A. Entendendo o Humor. Paulus: São Paulo, 1994, p. 16, 22.
[8] Robert A. Johnson. He: A Chave do Entendimento da Psicologia Masculina. São Paulo: Mercuryo, 1987.
[9] Disponível em: http://www.master.iag.usp.br/ensino/Sinotica/AULA05/AULA05.HTML - Acesso em 10.09.11.
[10] MARTINS, A. Entendendo o Humor. Paulus: São Paulo, 1994, p. 12.
[11] JUNG, C. G. Memórias, sonhos e reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988, p. 105.

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