quarta-feira, 20 de abril de 2011

Tratamento psicoterápico infantil segundo a psicologia junguiana


CONTRIBUIÇÃO DA PSICOLOGIA ANALÍTICA AO TRATAMENTO PSICOTERÁPICO INFANTIL
PERES, Sílvio Lopes[1]

RESUMO
O presente artigo apresenta através de uma investigação bibliográfica a proposta de Carl Gustav Jung (1875-1961) quanto ao tratamento psicoterápico infantil, a partir dos conceitos analíticos e de sua aplicação na clínica.

PALAVRAS-CHAVE: Carl Gustav Jung. Criança. Psicoterapia Junguiana.

ABSTRACT

The present search presents through a bibliographical investigation Carl Gustav Jung's proposal (1875-1961) with relationship to the infantile psychotherapic treatment, starting from the analytic concepts and the application in the clinic.

KEYWORDS: Carl Gustav Jung. Child. Jungian psychotherapy.

INTRODUÇÃO
Não é difícil perceber que a criança é muito mais do que os aspectos fisiológicos e motores que apresenta nas diferentes fases de seu desenvolvimento, contudo, as opiniões quanto a sua presença no espaço clínico psicoterápico, muitas vezes são contraditórias e isto se deve à diversidade dos campos da psicologia. A criança, normalmente, se faz presente no espaço psicoterápico quando apresenta algum desvio de comportamento, ou quando assim é interpretado. O presente artigo é uma pesquisa bibliográfica conforme se verifica nas obras de Carl Gustav Jung, e de autores que se identificam com a abordagem analítica.
Michael Fordham (2006) afirma que a contribuição da Psicologia Analítica ao tratamento psicoterápico infantil iniciou-se com Dora Kalff (1904-1990), que por sua vez foi influenciada por Margaret Lowenfeld (1890-1973), criadora da técnica do Sandplay, ou Caixa de Areia, que a adaptou às crianças.
         Uma das características que pode ser observada no processo de desenvolvimento da criança é a sua capacidade de comunicar-se com o mundo externo. Segundo Jung (2000) inicialmente, a criança faz auto-referência na terceira pessoa, como se não fosse ela mesma, isto acontece porque a criança ainda não adquiriu identidade própria, que só mais tarde, através de atividades nas quais empreende interação com o meio sofre esta alteração. Para ele (2000, p. 340): “[...] é que surge o sentimento da subjetividade ou da egoicidade. Este é, provavelmente, o momento em que a criança começa a falar de si mesma na primeira pessoa”.

A CRIANÇA SEGUNDO A PSICOLOGIA ANALÍTICA
Segundo REIS (2000, p. 8): “Michael Fordham preencheu uma lacuna do desenvolvimento infantil existente na teoria de Carl Gustav Jung”. Um dos primeiros textos de Jung sobre a criança e seu mundo se encontra na apresentação que fez do livro “The Inner World of Childhood”, da psicóloga escolar Frances G. Wickes, escrito em 1927. Para FORDHAM (2006, p. 16): “Wickes foi a primeira a fazer aplicação da teoria dos tipos às crianças e por haver concebido alguns métodos engenhosos de lidar com seus processos afetivos primitivos”. Segundo Reis (2000), para Jung a criança é herdeira psicológica e biológica do que chamava de inconsciente coletivo, que segundo CAMARGO (2000, p. 1): “são materiais psíquicos que não provém da experiência pessoal”. Conforme Jung (2006) a psique se apresenta desde a primeira fase da vida humana, designada como “pré-sexual” (1994, p. 68), quando a criança apresenta as mesmas morbidades dos seus pais, como também os talentos que podem ser encontrados em sua árvore genealógica. Segundo Jung (apud REIS, 2000, p. 13): “O que é herdado não são as idéias, mas as formas, as quais sob esse aspecto particular correspondem aos instintos igualmente determinados por sua forma”. A “forma” prepondera sobre as “idéias”, porque a criança ainda não possui consciência que lhe permite diferenciar-se das demais pessoas. De acordo com JUNG (1983, p. 45): “Ainda não existe o “eu” claramente diferenciado do resto das coisas, mas tudo o que existe são acontecimentos ou ocorrências”. Só mais tarde, a criança manifesta o conteúdo do inconsciente pessoal, formado pelas suas experiências pessoais. Até então, a criança atribui a sua existência e está sob a influência daquilo que EDINGER (1995, p. 21) chama de “psique arquetípica, pré-pessoal ou transpessoal”, que Jung chamou de Self, ou Si-Mesmo. Conforme NEUMANN (2003, p. 28):
A criança, por exemplo, vivencia em sua mãe, em primeiro lugar, o arquétipo da Grande Mãe, ou seja, a realidade de um Feminino onipotente do qual essa criança é totalmente dependente, e não a realidade objetiva e pessoal dessa mãe – a mulher historicamente individual –, aquela que surgirá como a figura da mãe para essa criança, quando mais tarde ela tiver desenvolvido o seu ego e a sua consciência.

Para JUNG (2000, p. 353): “a infância é aquele estado sem problemas conscientes, no qual somos um problema para os outros, mais ainda não temos consciência de nossos próprios problemas [...] nada depende do sujeito”. Ainda segundo ele:
É como se não tivesse nascido ainda inteiramente, mas se achasse mergulhada na atmosfera dos pais. [...] a vida psicológica do indivíduo é governada basicamente pelos instintos e por isso não conhece nenhum problema. Mesmo quando limitações externas se contrapõem aos impulsos subjetivos, estas restrições não provocam uma cisão interior do próprio indivíduo. Este se submete ou as evita, em total harmonia consigo próprio. Ele ainda não conhece o estado de divisão interior, induzido pelos problemas. Este estado só ocorre quando aquilo que é uma limitação exterior se torna uma limitação interior, isto é, quando um impulso se contrapõe a outro. (JUNG, 2000, p. 340)

O ego durante a primeira fase da vida representa o Si-Mesmo atuando como se fosse o próprio, como forma de enfrentar seus medos, frustrações, fantasias, desejos, etc. A criança tem o seu ego subordinado ao Si-Mesmo, pois este é o arquétipo ordenador e unificador, o princípio estruturador do inconsciente coletivo. Predominantemente a criança percebe o mundo mitologicamente, isto é, vivencia-o através das imagens arquetípicas que as domina, e no qual são projetadas. Cabe ao psicólogo analítico considerar que a criança manifesta em seu comportamento este mundo arquetípico que se apresenta segundo Jung (2000, p. 341): “anárquico e caótico”. De acordo com COSTA (2004, pp. 28, 37) é no tratamento psicoterápico infantil que se observa:
[...] forças misteriosas que, muitas vezes, nos assustam e perturbam, pois são carregadas de energia psíquica e, por isso, capazes de promover uma série de sintomas. [...] É tarefa da psicoterapia auxiliar este processo dialético, de “entrada e saída” do inconsciente, a fim de aproximar o ego das possibilidades latentes que estão no inconsciente.

ATUAÇÃO CLÍNICA COM A CRIANÇA
Para a Psicologia Analítica o ego é um complexo assim como muitos outros, com a diferença de que este tem a consciência associada a ele. De acordo com HALL (1995, p. 42) “todos os conteúdos da psique estreitamente ligados ao ego também compartilham, por conseguinte, da consciência”. Portanto, é no ambiente analítico que a forte ligação do ego com o Si-Mesmo é observada. Conforme EDINGER (1995, p. 22) “[...] a relação entre o ego e o Si-Mesmo é altamente problemática”, e é este o material a ser trabalhado com o sujeito criança, inicialmente percebendo-a como um indivíduo mais complexo que as características hereditárias dos seus pais, que conforme JUNG (1983, p. 46) “o conhecimento da carga genética, nada tem a oferecer de prático ao tratamento psíquico (...), pois o que atua sobre a criança são os fatos e não as palavras”.
O tratamento psicoterápico infantil, segundo a psicologia analítica é promover a separação o ego do Si-Mesmo, evitando assim a identificação com este, pois caso isto aconteça dá-se a inflação. Conforme Jung (apud SHARP, 1997, p. 52): “O termo “criança” significa algo que evolui em direção à independência; mas isto, ela não pode fazer sem um desligamento de suas origens”. O propósito desta separação, que deve ser o alvo principal no tratamento psicoterápico infantil é para que o ego não atribua a si mesmo as qualidades do Si-mesmo, pois este está muito além de suas próprias medidas, e a criança não pode ter à sua disposição todo o poder do mundo. Isto precisa ser evitado, pois de acordo com JUNG (1978, p. 30): “o impulso de poder exige que o eu fique “por cima”, isto é, domine de qualquer maneira”. Segundo Jung (1994) isto se dá quando a criança sofre mudanças fisiológicas importantes em seu desenvolvimento, ressaltadas, às vezes, frequente e desmedidamente a força do ego, quando há a deflagração da sexualidade, iniciando o período que chama de “pré-puberdade” (1994, p. 68). De acordo com EDINGER (1995, p. 27):
Nascemos num estado de inflação. Na mais tenra infância, não existe ego ou consciência. Tudo está contido no inconsciente. O ego latente encontra-se completamente identificado ao Si-Mesmo. O Si-Mesmo nasce, mas o ego é construído; e, no princípio, tudo é Si-Mesmo. [...] Como o Si-Mesmo é o centro e a totalidade do ser, o ego – totalmente identificado ao Si-Mesmo – percebe-se como divindade. Podemos descrever a situação nesses termos, retrospectivamente, embora o recém-nascido não pense desta forma. Na verdade, ele nem pode pensar. Mas seu ser e suas experiências totais estão ordenados em torno de uma suposição a priori de que ele é uma divindade.

Para JUNG (1983, p. 47) outro fator que precisa ser considerado pelo analista no tratamento psicoterápico infantil é: “a vida que os pais ou antepassados não viveram”, referindo-se às partes da vida que estes reprimiram no decorrer de suas vidas. Ainda de acordo com JUNG (1983, p. 46): “a responsabilidade dos pais se estende até onde eles têm o poder de ordenar a própria vida de tal maneira que ela não represente nenhum dano para os filhos”.
Segundo ZWEIG e ABRAMS (2009, pp. 80, 81) é importante que os pais e psicoterapeutas compreendam:
Existem formas de comportamentos que não são aceitáveis na sociedade humana; a criança precisa aprender isso; a criança precisa organizar sua própria capacidade interior de controlar essas formas de comportamento. Uma atmosfera permissiva faz com que se embote a capacidade de a criança desenvolver seu próprio sistema de monitoração do comportamento. O desenvolvimento do ego, então, será demasiado fraco para permitir que a criança, quando adulta, possa lidar com a sombra.

Quanto à relação analista-paciente, mesmo que seja uma criança, em nada é diferente daquela que é vivenciada com uma pessoa adulta. Segundo SAMUELS et al (1988, p. 30) deve ser um “processo dialético”. Cabe ao analista ter consciência de que sua autoridade como adulto pode intimidar a criança e inviabilizar o tratamento psicoterápico que se propõe, contudo, deve colocar-se como uma pessoa que também tem algo a aprender com ela, assim como faz com os outros pacientes. O analista deve ser acolhedor, e isto dará confiança à criança para se expressar. De acordo com GUTFRIEND (2004, p. 11):
O terapeuta precisa cultivar a capacidade de acolhimento e de continência. Ele cria uma situação em que a criança vai se sentir contente, com prazer, mas também com ansiedade, com uma certa angústia. O terapeuta deve acompanhar a criança nesse processo, com uma qualidade materna (ou paterna), sabendo o tempo certo de estimular a criança para falar um pouco mais, abrindo-lhe um espaço lúdico, abrindo e preservando.

Conforme ZWEIG e ABRAMS (2009, p. 79): “É importante que, no processo de crescimento, as crianças de identifiquem com os atributos psicológicos apropriados e não com a sombra; pois, se houver demasiada identificação com a sombra, o ego terá um “pé torto”, um defeito fatal”. Para GUTFREIND (2004, p. 10) é “através dos símbolos e das metáforas, que as crianças sentem-se mais à vontade para falar das coisas difíceis de suas vidas”.
Neste ponto pode-se surgir a questão: a partir de qual idade a criança pode ser entendida como indivíduo? A “barreira’ de comunicação é derrubada pela competência do psicólogo analista, que segundo MELLO (1995, p. 424):
O profissional competente é aquele que possui o desejo e a capacidade de brincar sem muitos bloqueios. [...] o paciente percebe esta liberdade interior do adulto, compara ambos os mundos internos, e procura interrelacioná-los, buscando a criatividade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Segundo a Psicologia Analítica a criança está, integral e inconscientemente, ligada ao mundo arquetípico, e este é o principal desafio que se apresenta ao tratamento psicoterápico. Cabe ao analista, paciente e ativamente, acompanhar a criança em seu mundo inconsciente, identificado com o Si-mesmo, levar a criança a se desenvolver e se organizar no mundo objetivo, despertando na própria criança a sua capacidade de diferenciar-se das imagens do inconsciente coletivo, e de encontrar a si mesma, com o objetivo de se realizar como indivíduo, que precisa ser respeitado desde a primeira fase de sua existência, livrando-a de experiências que podem colocá-la em risco.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CAMARGO, C. http://www.celiacamargo.com/PsicologiaAnaliticaJung.pdf, 2000. (consulta realizada em 02/02/2010)
COSTA, D. F. C. As imagens do inconsciente no brincar de uma criança em psicoterapia: um entendimento junguiano - Centro Universitário Franciscano, Santa Maria, 2004
EDINGER, E. F. Ego e Arquétipo: uma síntese fascinante dos conceitos psicológicos fundamentais de Jung. 10 ª Edição. São Paulo: Cultrix, 1995.
FORDHAM, M. A Criança como indivíduo. São Paulo: Cultrix, 2006.
GUFREIND, C. Era uma vez na clínica. Revista: Viver Psicologia, Nº 133, Ano XII. São Paulo: Dueto, 2004.
HALL, J. A. A experiência Junguiana: análise e individuação. 10ª Edição. São Paulo: Cultrix, 1995.
JUNG, C. G. A Natureza da Psique. 5ª Edição. Petrópolis: Vozes, 2000.
­­­__________ O Desenvolvimento da Personalidade. 2ª Edição. Petrópolis: Vozes, 1983.
__________ Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 4ª Ed. São Paulo: Vozes, 2006.
__________ Psicologia do Inconsciente. Petrópolis: Vozes. 1978.
__________ Teoria del Psicoanálisis. 3ª Edição. Barcelona/Espanha: Plaza&Janés Editores, 1994.
MELLO, A. M. de. Ludoterapia: a liberdade do espírito. Marília: Unimar – Universidade de Marília, 1995.
NEUMANN, E. A Grande Mãe. Um estudo fenomenológico da constituição feminina do inconsciente. São Paulo: Cultrix. 2003.
REIS, L. A dificuldade de vínculo mãe-bebê diante da prematuridade - http://www. symbolon.com.br/monografias/A_dificuldade_de_vinculo_mae_bebe_diante_da_prematuriadade.doc, 2000. (consulta realizada em 04/02/2010)
SAMUELS, A.; SHORTER, B. e PLAUT, F. Dicionário Crítico de Análise Junguiana. Rio de Janeiro: Imago, 1988.
SHARP, D. Léxico Junguiano: Dicionário de Termos e Conceitos. 10ª Edição. São Paulo: Cultrix, 1997.
ZWEIG, C. e ABRAMS J. (Orgs.) Ao Encontro da Sombra. São Paulo: Cultrix, 2009.


[1] Teólogo, Pedagogo, Especialista em Docência do Ensino Superior, Mestre em Ciências da Religião, e Acadêmico do Curso de Psicologia - FASU/ACEG - e-mail: silviosilvia@ig.com.br

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